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IV - A "Garde Nationale" na Revolução Francesa

A Garde nationale foi uma milícia de cidadãos franceses, criada em Paris, em julho de 1789. Tratou-se de uma força organizada com dois objetivos: por um lado, assegurar a ordem e a proteção de pessoas e bens frente aos grupos revoltosos; por outro, defender Paris de uma eventual intervenção das tropas francesas ainda afetas ao Rei. Milícias idênticas à de Paris foram rapidamente organizadas na generalidade das cidades francesas. A legislação que foi aprovada nos anos seguintes transformou este conjunto de guardas nacionais numa força da ordem, armada e em uniforme, mas não profissional e sob controlo da autoridade civil. A legislação previa ainda a organização, no seio das guardas nacionais, de unidades militares de voluntários que reforçariam as tropas regulares na defesa do território contra inimigos externos.

 A FORMAÇÃO DA GARDE NATIONALE

A França atravessava problemas económicos graves e Luís XVI viu-se obrigado a convocar os Estados Gerais. A primeira reunião dos representantes das ordens em que então se dividia a sociedade francesa aconteceu a 5 de maio de 1789. Embora Luís XVI tentasse manter o controlo da situação, os opositores ao regime absolutista eram já muito numerosos e estavam determinados a resistir. No dia 17 de junho, foi proclamada a Assembleia Nacional. A França estava perante a queda do ancien régime e a emergência de um sistema de governo mais democrático.

Neste processo de transição, as tensões políticas e sociais aumentaram enquanto a população mais desfavorecida sofria com o aumento do preço dos alimentos e a escassez de bens essenciais. As manifestações contra o agravamento do custo de vida não foram alheias ao processo político em curso e, frequentemente, foram instigadas pelas diferentes correntes políticas; adquiriam um carácter cada vez mais violento. A repressão de uma dessas manifestações, no final de abril, tinha causado meia centena de mortos e feridos [Rees, 2008, 34].

No dia 12 de julho, Paris recebeu a notícia de demissão de Necker, considerado o único ministro capaz de encontrar soluções para a grave crise financeira. Esta notícia provocou novas manifestações contra o Rei. A população temia que a demissão daquele ministro fosse um passo no sentido de restaurar o poder real. Um número cada vez mais elevado de Parisienses começou a concentrar-se frente ao Palais Royal, residência do Duque de Orléans, situada perto das Tulherias, que se tinha tornado ponto de encontro das diversas tendências políticas que pretendiam mudar o regime. Alguns oradores mais radicais apelaram à população para pegar em armas. Começou a procura de mosquetes e munições. As fábricas e lojas de armamento foram saqueadas e muitos parisienses começaram a andar armados. Registaram-se confrontos com as autoridades e as tropas reais que guardavam as Tulherias.

Perto de Versalhes, Luís XVI dispunha de uma força militar de 25.000 homens. Entre as tropas ao serviço do Rei, existia um regimento de infantaria chamado Gardes-françaises, uma unidade de elite, que se encontrava em Paris. Com a finalidade de evitar confrontos com os amotinados, o que poderia conduzir à intervenção das tropas que se encontravam à volta de Versalhes, os Gardes-françaises receberam ordem, no dia 12 de julho, para retirar de Paris, mas muitos desobedeceram e desertaram colocando-se do lado dos revoltosos. Nesse mesmo dia, foram atacados os postos que, nas portas de Paris, cobravam impostos sobre os bens que entravam na cidade, incluindo géneros alimentares. A maior parte desses postos de controlo foi destruída e, ao longo das ruas de Paris, construíram-se barricadas para dificultar ou impedir o movimento das tropas reais. A procura de armas e munições continuou em toda a cidade. Foram encontrados 28.000 mosquetes e 20 bocas de fogo de artilharia no arsenal montado em Les Invalides. No ponto alto da rebelião, cerca de 250.000 parisienses estavam armados. O que estava em falta eram munições e pólvora e, para obtê-la, os revoltosos dirigiram-se para a fortaleza da Bastilha [Rees, 2008, 35-36].

As numerosas deserções que se tinham verificado entre os Gardes-françaises levaram os comandantes militares concluírem que não podiam contar com as tropas para conter as revoltas pois corriam o risco de ver cada vez mais militares a colocarem-se ao lado dos revoltosos. A 14 de julho de 1789, tinham desertado cinco dos seis batalhões dos Gardes-françaises. Muitos juntaram-se à multidão que cercou e tomou a Bastilha. A maior parte dos parisienses que participaram nesta ação eram os que foram chamados sans-culottes [Rees, 2008, 36]. Esta designação foi aplicada, a partir de 1791, à camada mais revolucionária que, em grande parte, correspondia a pequenos proprietários e artesãos ativos nas secções políticas de Paris, os que apoiavam as políticas radicais e igualitárias. A expressão tem origem no vestuário dos trabalhadores que, ao contrário da burguesia, vestiam calças e não os calções característicos desta última classe e da aristocracia [Rees, 2008, 222; Jones, 1988, 420].

Estes foram os acontecimentos que levaram à criação da Garde nationale. Tratou-se de criar uma instituição nova mas de acordo com conceitos antigos. As cidades tinham criado milícias urbanas, corpos de polícia a que se pode dar uma designação geral de «gardes bourgeoises» [Corvisier, 1988, 358] que, com a Revolução, acabariam por ser extintas. Para além destas milícias, existia um corpo de polícia designado Maréchaussée que, a 16 de fevereiro de 1791, foi substituído pela Gendarmerie nationale com missões de polícia administrativa e judiciária, em muito idênticas às da instituição que substituiu [Duvergier, Tomo 2, 165-171]. Este tipo de instituição não era vocacionado nem tinha efetivos suficientes para enfrentar as manifestações que se espalhavam por todo o Reino e se tornavam cada dia mais violentas. A Maréchaussée tinha cerca de 4.000 homens e a Gendarmerie nationale tinha, no máximo, de acordo com o que estava legislado, um efetivo de 7.455 gendarmes.

Com a finalidade de atenuar a tensão que se fazia sentir em Paris, a Assembleia Nacional pediu ao Rei, no dia 8 de julho, para retirar as suas tropas que se encontravam concentradas à volta de Versalhes. Era importante afastá-las de Paris para que não fossem vistas como uma força de pressão sobre os deputados. Para assegurar a ordem, contava-se com os Gardes-françaises mas, como vimos, muitos dos efetivos desta força desertaram e muitos colocaram-se ostensivamente ao lado dos revoltosos. Quando lhes foi dada ordem para abrirem fogo sobre a multidão, mesmo que apenas de forma intimidatória, recusaram-se a fazê-lo e, em breve, a maioria deles estava em confraternização com os revoltosos.

No fim do dia 12, perante a evolução descontrolada da situação em Paris, os eleitores (aqueles que, no sistema de “patamares” em que se realizavam as eleições, tinham sido escolhidos para elegerem os deputados aos Estados Gerais) reuniram-se e formaram um comité permanente com o objetivo de controlarem os acontecimentos na capital francesa. Uma das primeiras medidas deste comité foi a criação de uma milícia com duas finalidades: por um lado, a proteção de pessoas e bens contra os excessos de uma multidão revoltada pelas dificuldades do dia a dia; por outro lado, conter a ameaça que a maior parte da aristocracia constituía, na sua pretensão de retomar o status do Antigo Regime, ou até, se necessário, defender Paris da possível ameaça que as tropas reais constituíam. Foi eleito para comandar esta força o Marquês de Lafayette, que assumiu este cargo a 16 de julho. Desde o dia 15 que esta milícia passou a chamar-se Garde nationale.

 

DEPENDÊNCIA DA GARDE NATIONALE

Esta milícia tem sido sempre considerada como uma força burguesa. As fileiras desta instituição, urbana, eram preenchidas pela burguesia, o que significava excluir os sans-culottes. Desta forma, parece ser lógico seguir a ideia geral de que ela servia os interesses dessa burguesia. No entanto, teve uma participação ativa e importante nos movimentos populares. É por essa razão que Florence Devenne defende que «c’est à travers les études du mouvement populaire que nous avons pu étudier et mettre en valeur léngagement revolutionaire des gardes nationales ainsi que paradoxalment, leur rôle répressif.» [Devenne, 49]

Este duplo papel, revolucionário e repressivo, apresenta realmente um caráter contraditório mas não paradoxal se analisarmos as ações dos “eleitores”. A Garde nationele (de Paris), e as suas congéneres, que surgiram pela generalidade das cidades francesas onde a autoridade do rei se tinha desmoronado, eram instituições municipais, enquadradas na revolução municipal que cobriu todo o mês de julho de 1789. Ora, o controlo dos municípios, em Paris e depois nas outras cidades, pertencia aos “eleitores”, ou seja, à burguesia, aos “cidadãos ativos” (veremos adiante o significado desta expressão). Por este lado, podemos afirmar que a burguesia controlava os meios repressivos destinados à manutenção da ordem e à proteção de pessoas e bens. Na realidade, as diferentes guardas nacionais mantinham um elevado grau de autonomia e agiam de acordo com as solicitações do poder municipal que requisitava o seu serviço. No entanto, foram esses mesmos eleitores que, juntamente com os apoiantes do Duque de Orleães, com o objetivo de forçarem as mudanças do regime político, transformaram os tumultos mais ou menos espontâneos numa insurreição geral [Rees, 37].

De facto, nem sempre as relações entre os poderes municipais e as guardas nacionais foram pacíficas e foi necessário percorrer um caminho longo de construção do código legislativo que definiu, durante a Revolução, o estatuto desta instituição. A 10 de agosto de 1789, as guardas nacionais foram legalmente submetidas à tutela dos municípios, o que foi confirmado pelo decreto de 14 de dezembro do mesmo ano. O decreto de 22 de dezembro de 1789 permitia que as administrações dos “departamentos” também pudessem requisitar o serviço das forças das guardas nacionais [Devenne, 51]. No decreto de 14 de dezembro de 1789, que trata da orgânica dos municípios, podemos ler [Duvergier, tomo 1, 78]:

«52. Pour l’exercice des fonctions propres ou délégués aux corps municipaux, ils auront le droit de requèrir le secours nécessaire des gardes nationales et outres forces publiques, ...»

Competia à guarda nacional garantir a execução da legislação. A 21 de outubro de 1789, na Assembleia Nacional Constituinte, foi votado o texto da Lei Marcial. Esta lei foi aplicada em algumas cidades, em 1789 e 1790, a propósito das manifestações contra a saída de cereais para outras localidades. As manifestações foram reprimidas pelas respetivas guardas nacionais, a fim de permitirem a livre circulação dos cereais. Este é um entre muitos outros exemplos da intervenção repressiva das guardas nacionais. No entanto, houve casos em que os guardas nacionais se colocaram à cabeça dos grupos de amotinados. Em Paris, a marcha para Versalhes a 5 e 6 de outubro de 1789, foi apoiada pela Guarda nacional parisiense. Esta colocou-se à frente dos manifestantes, com a presença do seu comandante, Lafayette, apesar das dúvidas por ele levantadas sobre este tipo de atuação.

A questão da dependência da Garde nationale ficou clarificada na lei de 29 de setembro de 1791. Tratou-se de definir quem podia requisitar o seu serviço. O debate então travado, convém ter presente, aconteceu quando se preparava uma Constituição que iria dar origem à instauração de uma monarquia constitucional. Isto significava a exigência de um Poder Legislativo independente, mas o Poder Executivo continuava nas mãos do Rei. O problema levantado no decorrer dos debates era o de o Poder Executivo dispor de uma força que, vocacionada para atuar no interior do território, poderia ser propícia a apoiar o despotismo. 

No seu discurso de 27 de abril, Robespierre defendeu o conceito de guarda nacional como uma instituição que seria um contrapeso ao poder executivo, pois este já controlava o exército e a maréchaussée. A guarda nacional deveria garantir a proteção da liberdade pública. Esta questão não está dissociada da que já tratámos, a composição da guarda nacional, e foi apresentada por Robespierre com as seguintes palavras [Devenne, 58]:

«Les lois constitucionnelles tracent des règles quíl faut observer pour être libre; mais c’est la force publique que nous rend libre de fait en assurant l’execution des lois. La plus inévitable de toute les lois, la seule qui soit toujours sûre d’être obéie, c’est laloi de la force. L’homme armé est le maître de celui qui ne l’est pas.»

As guardas nacionais constituíam, sem dúvida, uma força com capacidade de oferecer uma oposição decisiva às pretensões dos que aspiravam a restaurar o anterior poder do Rei. Estes, durante as discussões na Assembleia Nacional, colocaram a questão da direção geral da guarda e defenderam que o seu controle devia ser feito no quadro de uma conceção centralizada da administração. Isto significava colocar as guardas nacionais sob controlo real. Esta proposta apareceu durante a discussão da possibilidade de colocar, mesmo que temporariamente, o poder executivo na dependência direta do Rei, com a finalidade de enfrentar a situação de falta de controlo que se fazia sentir em toda a França, especialmente em Paris. Este projeto foi rejeitado pela Assembleia e, no caso que estamos a analisar, as guardas nacionais mantiveram a sua dependência aos poderes municipais [Devenne, 53].

 

COMPOSIÇÃO DA GARDE NATIONALE

As guardas nacionais foram chamadas “guardas burguesas”. A expressão “burguesia” tem origem medieval e designava os habitantes dos burgos que, não sendo nobres, tinham conquistado uma posição acima dos servos. No século XVIII, em França, durante a Revolução Francesa, este termo passou a designar os detentores dos meios de produção, patrões, empregadores, a “classe dirigente”. Trata-se, contudo de uma expressão que, perante o confronto com o poder real absoluto, englobou, nesse cenário, uma diversidade de elementos sociais que não representavam uma unidade política, social ou económica [Macedo, 646]. Trata-se de uma expressão pouco precisa e que, com frequência, é traduzida por “classe média”.

Quem eram então os elementos que constituíam as guardas nacionais? Os municípios começaram por organizar as guardas nacionais de acordo com os interesses daqueles que se enquadravam no conceito de burguesia. A 22 de dezembro de 1789, pouco mais de cinco meses após a criação da Garde nationale em Paris, foi aprovado na Assembleia Nacional um decreto relativo à constituição das assembleias primárias e assembleias administrativas. Este decreto introduz o conceito de citoyen actif (cidadão ativo), na Secção I, Artigo 3º [Duvergier, tomo 1, 87]:

«Les qualités nécessaires pour être citoyen actif sont:
1º d’être Français ou devenu Français;
2º d’être majeur de vingt cinq ans au moins accomplis;
3º d’être domicilié de fait dans le canton, au moins depuis un an;
4º de payer une contribuition directe de la valeur locale de trois journées de travail;
5º de n’être point dans l’état de domesticité, cést-a-dire, de serviteur à gages.»

Estima-se que cerca de quatro milhões e trezentos mil Franceses se enquadrassem nesta categoria [Rees, 52]. Os que não pagavam os valores de imposto indicado eram designados citoyens passifs. Era de acordo com este conceito de cidadão ativo, com algumas prováveis variações entre diversos municípios, que as guardas nacionais recrutavam os seus membros. A sua composição só foi uniformizada no decreto de 12 de junho de 1790, «Décret relatif à línscription des citoyens actifs sur le registre des gardes nationales» [Duvergier, tomo 1, 252-253].

O artigo 1º deste decreto referia que todos os cidadãos ativos deviam inscrever-se na respetiva secção da comuna onde ficariam registados para o serviço no respetivo corpo da guarda nacional. Esta inscrição era necessária para manterem o exercício dos direitos relativos à sua condição de cidadãos ativos. No artigo seguinte estipulava-se que os seus filhos deviam inscrever-se da mesma forma, mas com a idade de 18 anos e que, se não o fizessem, seriam penalizados nos mesmos termos dos pais. O artigo 3º tratava das condições de incapacidade para o serviço. O artigo 4º, de que a seguir transcrevemos uma parte, tratava do porte de armas e da uniformidade das guardas nacionais e, principalmente, da inclusão de todas as demais forças de origem burguesa [Duvergier, tomo 1, 253]:

«Aucun citoyen ne pourra porter les armes, síl nést inscrit de la manière qui vient d’être réglée; en conséquence, tous corps particuliers de milice burgeoise, d’arquebusiers ou outres, sous quelque dénomination que ce soit, seront tenus de s’incorporer dans la garde nationale, sous l’uniforme de la nation, sous les mèmes drapeaux, le mème régime, les mèmes officiers, le mème état-major; tout uniforme différent, toute cocarde outre que la cocarde nationale, demeurant réformés, aux termes de la proclamation du Roi.»

Como podemos ver pelos decretos de 22 de dezembro de 1789 e 12 de junho de 1790, a camada mais pobre da população ficou afastada do serviço na guarda nacional. O seu sistema de recrutamento, baseado no recenseamento fiscal da população, e a sua missão repressiva acentuam o carácter paradoxal desta força que participou frequentemente nas manifestações das camadas mais desfavorecidas, apoiadas pelas fações políticas mais ou menos radicais. Por outro lado, a festa da Fédération nationale foi a de uma guarda nacional que excluía das suas fileiras parte dos cidadãos franceses. A demonstração de unidade que tal cerimónia parece evocar acaba por ser uma demonstração de uma classe social que pretende fazer cumprir as leis como as que atrás vimos: «protéger conformément aux lois la sûreté des personnes et des propriétés, la circulation des grains et des subsistances dans l’intérieur du royaume; la perception des contributions publiques sous quelques formes q’elles existent» segundo o discurso de Lafayette [Devenne, 55].

 

ORGANIZAÇÃO DA GARDE NATIONALE

Apesar de existir legislação importante já publicada, que previa as situações em que o serviço das guardas nacionais podia ser requisitado pelas instituições administrativas do território – municípios, departamentos – e a sua forma de recrutamento, foi só entre novembro de 1790 e setembro de 1791 que a Assembleia Nacional se dedicou a definir a organização geral da guarda nacional. Este conceito de “organização geral” é mais complexo do que parece numa análise superficial pois terá de ser feito no âmbito de uma conceção específica de sociedade. Ora, entre maio de 1789 e até 30 de setembro de 1791, decorreram os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte que preparou a Constituição de 1791, isto é, preparou o conjunto de regras jurídicas que, por um lado, devem representar o sentir da sociedade, e por outro, devem conduzir a sociedade no modelo político escolhido.

Os debates que então se verificaram na Assembleia sobre a guarda nacional apontam para conceções divergentes. Este debate terminou com a aprovação da lei de 29 de setembro de 1791, Décret relatif à l’organization de la garde nationale. Este decreto está dividido em cinco secções e engloba cento e dez artigos. As secções são as seguintes [Duvergier, tomo 3, 403-410]:

 
Section I – De la composition de la liste des citoyens.
Section II – De l’organisation des citoyens pour le service de la garde nationale.
Section III – Des fonctions des citoyens servant en qualité de gardes nationales.
Section IV – De l’orde du service.
Section V – De la discipline des citoyens servant en qualité de gardes nationales.

Esta legislação, como outra atrás referida, encontra-se digitalizada e disponível ao público. E dela iremos apenas referir o conteúdo da Secção I, ou seja, a composição da guarda nacional.

A lei de 29 de setembro de 1791 confirmou a descentralização da guarda nacional e a sua submissão ao poder legislativo. A Secção II indica como deve ser feita o seu levantamento. O artigo 1º desta secção determina que a guarda nacional seja organizada pelas divisões administrativas do território, distritos e cantões (O território francês estava dividido em departamentos, estes em distritos que, por sua vez, se dividiam em cantões). Havia uma nítida intenção de dividir a guarda nacional pelas áreas administrativas mais pequenas a fim de evitar a organização de forças que, pela sua dimensão, fossem demasiado fortes. Nas cidades com dimensão suficiente para estarem divididas em secções, estas seriam, para este efeito, equivalentes aos cantões. As cidades com mais de 50.000 habitantes seriam consideradas como distritos. Não poderia ser levantada nenhuma força da guarda nacional ao nível do departamento [Duvergier, tomo 3, 405]

Em cada distrito, a guarda nacional estava organizada em batalhões a quatro companhias. Também seria formada uma quinta companhia de granadeiros com o número máximo de oitenta guardas. Mais tarde, foram organizadas companhias de caçadores (chasseurs). Oito a dez batalhões de um mesmo distrito formavam uma legião. Os restantes artigos desta secção tratam composição de cada uma destas unidades e da eleição dos oficiais e sargentos que as deviam enquadrar. A sua escolha estava sujeita a várias restrições. Os oficiais das tropas de linha ou da gendarmerie nationale não podiam ser eleitos para estas funções. Esta era mais uma medida para evitar a ligação da guarda nacional às forças controladas pelo poder executivo. No entanto, na secção III, para além das funções que podiam ser atribuídas à guarda nacional por requisição das autoridades civis, fica aberta a possibilidade da sua intervenção numa guerra com o exterior [Duvergier, tomo 3, 408].

 

RECRUTAMENTO PARA A GARDE NATIONALE

No decorrer do debate que deu origem ao decreto de 29 de setembro de 1791, confrontaram-se duas conceções diferentes no que respeita ao universo de recrutamento. Jean-Paul Rabaut Saint-Étienne, deputado do departamento de Aube, na região de Alsace-Champagne-Ardenne-Lorraine, pertencente ao grupo político dos Girondinos, então maioritário na Assembleia Nacional Constituinte, defendeu o recrutamento censitário, isto é, baseado na definição de cidadania, que excluía os cidadãos passivos. Desta forma, a guarda nacional espelhava, não o povo francês, mas uma classe privilegiada [Devenne, 56]. A posição que mais se afastava daquela que era defendida por Saint-Étienne, era a dos Jacobinos, pela voz de Maximilien Robespierre, uma figura política em grande ascensão.

No dia 27 de abril de 1791, Robespierre dirigiu-se à Assembleia num longo discurso sobre a guarda nacional. No seu discurso, condenou a condição de cidadania – ativa ou passiva – baseada na riqueza, isto é, rejeitou uma sociedade dividida em duas classes, «une ne semblerait armée que pour contenir l’autre, comme un ramassis d’esclaves toujour prêtes à se mutinier ...». E acrescenta que este sistema instaura uma aristocracia. «Et quelle aristocratie! La plus insupportable de toutes; celle des Riches.» [Devenne, 59]. Defendendo que a força pública foi instituída para vantagem de todos, defendeu que a guarda nacional, força pública única, descentralizada, civil, fosse aberta a todos os cidadãos franceses com domicílio em França.

A lei de 29 de setembro de 1791 consagrou na Secção I, artigo 1º, que os cidadãos ativos se inscreverão para o serviço da guarda nacional e, no artigo seguinte, acrescenta que o não cumprimento desta obrigação acarreta a perda de direitos próprios dos cidadãos ativos. Robespierre não conseguiu eliminar do projeto de constituição esta divisão dos cidadãos e também na “lei orgânica” da guarda nacional.

No entanto, não é verdade que, antes da lei de 29 de setembro de 1791, todos os cidadãos passivos tenham sido excluídos das fileiras da guarda nacional. O decreto de 6 de dezembro de 1790, Décret concernant l’organisation de la force publique, estabelece que os “cidadãos não ativos” que durante a Revolução tenham cumprido serviço na guarda nacional podem ser autorizados a continuar a desempenhar essas funções vitaliciamente, de acordo com os regulamentos que viessem a ser aprovados no futuro. [Duvergier, tomo 2, 82]

 

INTERVENÇÃO NOS CONFLITOS EXTERIORES

Declarada a guerra, o Rei poderia requisitar o número de guardas nacionais que entendesse necessário e estes ficariam sob as suas ordens. No caso de tal acontecer, os guardas nacionais seriam incorporados nas tropas de linha, não individualmente, mas nas unidades por si constituídas, isto é, «elles marcherons toujours avec leurs drapeaux, ayant à leur tète les officiers de leur choix ...» [Duvergier, tomo 3, 408]. O treino militar para a missão integrada nas tropas da linha era adquirido em determinadas alturas do ano. Todos os domingos dos meses de abril, maio, junho, setembro e outubro se reuniam para ter instrução e, nos primeiros domingos desses mesmos meses, formavam os batalhões para treinarem as marchas, as formações militares e as suas evoluções no terreno e o tiro ao alvo. No fim de cada um destes treinos, o melhor atirador recebia um prémio.

Com o início da guerra contra a Áustria, iniciada em abril de 1792, foi necessário aumentar os efetivos das forças militares empenhadas no conflito. A guarda nacional forneceu um número considerável de batalhões de voluntários. No dia 5 de maio, foi aprovado um decreto relativo à formação de 31 batalhões de guardas nacionais voluntários. Esta situação estava já prevista na legislação do ano anterior. Os generais dos exércitos encarregados de defender as fronteiras foram autorizados, pelo decreto de 24 de julho, a requisitar parte dos granadeiros e caçadores da guarda nacional, dispondo assim das melhores unidades formadas por aquela instituição [Duvergier, tomo 4, 267].

 

UM EXEMPLO DE UM BATALHÃO DE VOLUNTÁRIOS

Um dos batalhões de voluntários da guarda nacional foi o Primeiro Batalhão de Voluntários de Paris. Formado em 1791, conhecemos os dados da sua organização relativos a 13 prairial (1 de junho), ano II da República (1794). De acordo com a orgânica então estabelecida, o batalhão era formado por 1.152 homens distribuídos da seguinte forma [Chassin & Hennet, 182-186]:

                    • Comando e estado-maior com 10 elementos de vários postos e categorias;
                    • Uma companhia de granadeiros com 83 homens;
                    • Oito companhias de atiradores (fusiliers) com 123 homens cada;
                    • Uma companhia de canonniers com 75 homens.

No dia acima indicado, o batalhão tinha presentes 1.067 homens. Alguns tinham sido destacados para outras funções e 62 estavam hospitalizados. Entre 1791 e 1795, o batalhão recebeu alguns recompletamentos (recursos humanos destinados a preencher as vagas deixadas em aberto numa unidade) pois perdeu alguns homens, uns em combate, outros devido a doença. Trata-se de uma unidade de voluntários que participou em numerosos combates e batalhas famosas desde abril de 1792. Neste ano, participou, entre outras, em duas importantes batalhas: Valmy (20 de setembro) e Jemmapes (6 de novembro) [Chassin & Hennet, 187-191]

No dia 30 de abril de 1792, sofreu a sua primeira baixa, Pierre-Étienne Dominique Guyot, ferido na perna esquerda durante um combate com tropas austríacas nos Países Baixos Austríacos (Bélgica). O primeiro caso de morte no campo de batalha foi registado no dia 11 de maio de 1792, em Raismes: Guillaume Barbet.  Entre 1792 e 1795, sofreu um total de 47 baixas, das quais 11 foram devidas a mortos no campo de batalha e um sargento foi feito prisioneiro (19 dezembro 1793, Lemback). Dos feridos, alguns vieram a falecer nos hospitais de campanha [Chassin & Hennet, 191-193].

Alguns (poucos) voluntários do Primeiro Batalhão de Paris alistaram-se muito novos. Guillaume Usse, de Paris, alistou-se como voluntário a 10 de abril de 1792, com 15 anos de idade; foi promovido a cabo a 2 de outubro do ano seguinte e foi ferido na Batalha de Hondschoote (6-8 de setembro de 1793); pensionista desde 1800, foi admitido no Hôtel Royal des Invalides em 1832. Morreu em 1857. Tendo em atenção a legislação que acima referimos -  decreto de 22 de dezembro de 1789 e lei de 29 de setembro de 1791 – a idade de inscrição na guarda nacional era de vinte e um anos. Este é um exemplo de um voluntário que, perante a grande necessidade de efetivos, escapou às malhas do sistema de recrutamento, mas é também um exemplo do entusiasmo com que parte importante da população, especialmente nas cidades, respondeu ao apelo para defesa da patrie en danger. 

 

EVOLUÇÃO POLÍTICA & EVOLUÇÃO DA GARDE NATIONALE

As tropas prussianas começaram a concentrar junto à fronteira francesa e, a 11 de julho de 1792, a Assembleia Legislativa declarou la patrie en danger. No dia seguinte é feito um apelo a 50.000 voluntários para o Exército. No dia 19 de agosto, as tropas aliadas entraram em França e só iniciaram a retirada após a Batalha de Valmy, a 20 de setembro. O crescimento dos movimentos de contra-revolução, a influência cada vez maior dos jacobinos, em especial de Robespierre, fez surgir em Paris, no início de 1792, um movimento para armar o povo com piques. Este movimento foi defendido por Robespierre num discurso no Clube dos Jacobinos, a 10 de fevereiro e, no dia 11, o município de Paris tomou as decisões no sentido de pôr em prática esta exigência e, ao fazê-lo, impôs a inscrição dos cidadãos passivos que viessem a ser armados de piques e, no dia 17 de julho de 1792, em Paris, estes passaram a ser aceites na guarda nacional [Devenne, 64].

Esta situação veio a ser consagrada à escala nacional através do decreto de 1 de agosto de 1792, décret qui charge les municipalités de faire fabriquer les piques, à custa de tesouro público, com a finalidade de serem distribuídos a todos os cidadãos que se encontrem em estado de poderem utilizar armas e que não sejam já portadores de uma arma igual ou de uma espingarda (fuzil) ou carabina. O artigo 2º esclarece a quem devem ser distribuídos os piques [Rondonneau, 590]:

Ces piques seront distribués à tous les citoyens indistinctement, excepté aux vagabonds, gens sens aveu et personnes notoirement connues par leur incivisme ou par une conduite qui pourrait rendre cette arme dangereuse entre leurs mains …

Por fim, o artigo 9º convidava todos os cidadãos a exercitarem com frequência, mediante autorização dos oficiais municipais, o manejo das respetivas armas. Estava abolida a distinção entre as duas classes de cidadãos, em todo o território francês, para efeito de alistamento na guarda nacional. Os voluntários que a guarda nacional agora fornece para a defesa das fronteiras, na realidade para a invasão dos territórios vizinhos, são, a partir desta altura, cidadãos franceses sem distinção de classe e sem as limitações de idade anteriormente impostas.

Voltemos ao exemplo do Primeiro Batalhão de Voluntários de Paris. O seu comandante (chef de bataillon), Jean-Baptiste Perrin, tinha 37 anos em 1791; tinha iniciado a sua vida militar no Regiment de Navarre como soldado, em 1773, e fora promovido a sargento em 1786; ingressou no Primeiro Batalhão de Paris em 1791, como Adjudant e, no ano seguinte, nomeado Adjudant-major; foi promovido a tenente-coronel a 20 de agosto de 1792, passou a ser o segundo comandante do batalhão; a 30 de março de 1793 foi promovido a coronel e passou a comandar o batalhão. Em 1795, o Primeiro Batalhão de Voluntários de Paris formou, com o Primeiro Batalhão das Ardenas e o Terceiro Batalhão de Drôme, a 201ª demi-brigade, de que o coronel Perrin foi comandante. O coronel Perrin veio a ser assassinado em 1800, por insurretos monárquicos, em Vauréas.

As chamadas demi-brigades, à semelhança das outras brigadas, eram formadas, em geral, por três batalhões dos quais dois eram formados por voluntários e o outro por tropas regulares. Esta foi a forma encontrada para não fazer entrar em batalha brigadas em que os seus batalhões eram inteiramente formados por soldados com preparação deficiente. Quando os voluntários começaram a não ser suficientes e se formou a Primeira Coligação contra a França, foi necessário adotar a levée en masse, isto é, um sistema que poderíamos designar por serviço militar obrigatório. O problema da falta de preparação das tropas recém incorporadas foi novamente resolvido com a criação das demi-brigades que, se completas, deveriam ter à volta de 3.000 homens [Rickard, J (11 January 2006)].

 

CONCLUSÃO

As guardas nacionais surgiram perante a necessidade de criar uma força capaz de enfrentar a onda de manifestações violentas que surgiu em toda a França, em 1789. Começou por ser uma força considerada burguesa, ou seja, formada por uma classe social para defender os interesses dessa classe. Na verdade, era essa mesma classe que detinha a capacidade de manter a economia francesa em funcionamento. De alguma forma, estes factos espelham a ação da burguesia francesa na sua luta pelo controlo do poder político. Quando, em 1792, foi abolida a distinção dos cidadãos franceses (ativos e passivos) e todos tiveram acesso, como direito e como dever, às fileiras da guarda nacional, vemos igualmente espelhada nesta instituição a luta e as alterações do modelo social da nova força política dominante, os jacobinos.

A relação que aqui nos foi possível observar na evolução da sociedade e da política, por um lado, e das instituições, por outro, não é exclusiva da guarda nacional. Os exércitos da Revolução espelharam as mesmas tendências o que facilitou a integração das unidades de voluntários da Garde nationale da mesma forma que o fez a Gendarmerie.  A evolução social e política da França revolucionária refletiu-se de forma clara em todas as instituições francesas da época. Esta influência não se fez sentir apenas no recrutamento e na organização das forças de segurança e militares. Inevitavelmente, a composição e organização das forças, nos moldes em que foi possível levantá-las, alteraram a forma de combater, isto é, a tática.

 

BIBLIOGRAFIA

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