Livro III

LIVRO III

I – Ao partir para Itália, César enviou Sérvio Galba com a XII legião e uma parte da cavalaria aosNantuates (alto vale do Ródano; na direcção da abadia de Saint-Maurice), aos Veragri (veragros; alto vale do Ródano, na região de Martigny)Seduni (sedunos; idem, na região de Sion).

Servius Sulpicius Galba, neto do cônsul de 144 com o mesmo nome, já fizera a guerra na Gália em 61. Deixará o exército em 54. Eleito pretor, fracassará o consulado em 50. Participou na conjura dos Idos de Março e serviu em seguida contra António, com o cônsul Hírcio. Mais tarde perseguido como assassino de César, fugiu e morreu no exílio.

A razão desta expedição era o desejo que tinha de abrir um caminho através dos Alpes (o do Grande Saint-Bernard), onde os mercadores não podiam passar sem correr grandes riscos e tinham de pagar portagem.

Galba, se o julgasse necessário, estabeleceria a legião nestas paragens para passar o Inverno. Depois de um grande número de combates favoráveis e da tomada de muitas fortalezas, Galba recebeu de todos os lados deputados com reféns e fez a paz. Decidiu colocar duas coortes nos nantuates e invernar ele próprio, com as outras coortes da legião, num burgo dos veragros, que se chama Octoduro (Octodurus; nas duas margens do Drance, um afluente do Ródano; hoje, Martigny). Este burgo, situado num estreito vale, está rodeado de todos os lados por montanhas muito altas. Cortando-o (ao burgo) o rio em duas zonas, Galba deixou uma aos Gauleses e, depois de a ter mandado evacuar, reservou a outra às suas coortes, para que elas aí estabelecessem os seus quartéis de Inverno. Fortificou esta posição com um entrincheiramento e um fosso.

II – Muitos dias se tinham passado nestes quartéis de Inverno, e Galba acabava de dar ordem de para ali trazerem trigo, quando foi de repente informado pelos seus batedores que a parte do burgo deixada aos gauleses fora completamente evacuada durante a noite, e que uma imensa multidão de sedunos e de veragros ocupava as montanhas vizinhas.

Os gauleses sabiam que esta legião não estava completa, mas que dela tinham destacado duas coortes e que estava privada de um grande número de isolados que tinham sido enviados em busca de víveres. Também se convenceram, dada a desvantagem da nossa posição, de que no momento em que lançassem os seus dardos e se precipitassem das montanhas para o vale, nem sequer este primeiro choque poderia ser sustentado pelas nossas tropas. Acrescentem o seu ressentimento por terem visto os seus filhos levados como reféns e a sua convicção de que os romanos procuravam ocupar os cimos dos Alpes menos para reter os caminhos do que para ali se fixarem para sempre e unirem estas regiões à Província limítrofe.

III – Galba ainda não terminara inteiramente o seu campo de Inverno e as suas defesas, nem fizera as necessárias provisões de trigo e de outros víveres, porque acreditara, depois da rendição dos Gauleses e da aceitação dos reféns, que nenhum acto de guerra seria de temer; convocou à pressa o conselho e pôs-se a recolher opiniões.

Em face de um perigo tão instante e tão inesperado, vendo quase todas as elevações cobertas por uma multidão de inimigos em armas, não esperando socorro nem abastecimento, pois que os caminhos estavam cortados, perante uma situação quase desesperada, muitos emitiam a opinião de abandonar as bagagens e de procurar a salvação abrindo passagem através dos inimigos, pelo mesmo caminho que tinham seguido para ali chegar. Contudo, a maioria decidiu reservar este partido para o último extremo, esperar o curso dos acontecimentos e defender o campo.

IV – Pouco depois, já os inimigos acorriam de todas as partes, lançando sobre o entrincheiramento pedras e setas. Os nossos resistiram corajosamente...sempre que um ponto do campo, desguarnecido de defensores, parecia vivamente pressionado, eles ali acorriam a levar socorro; mas o inimigo tinha a vantagem de substituir por tropas frescas aquelas que a duração do combate esgotara; o seu pequeno número impedia os nossos de fazer o mesmo: não só não podiam, quando estavam esgotados, retirar-se da acção, como os próprios feridos não podiam abandonar as portas em que estavam colocados para serem rendidos.

V – Já se combatia há mais de seis horas sem descanso; os nossos não só estavam no extremo das suas forças como já nem sequer tinham frechas; o inimigo tornava-se mais insistente e, enfraquecendo os nossos soldados, começava a forçar o entrincheiramento e a encher os fossos; a situação era de extrema gravidade. É então que Públio Sêxtio Báculo, centurião primipilo, e Caio Voluseno, tribuno militar (tribuno do povo em 43; foi partidário de António), acorrem junto de Galba e demonstram-lhe que a única forma de salvação é tentar o supremo recurso de uma surtida.

Os centuriões são convocados: os soldados suspendem por alguns momentos o combate e formam para o ataque; depois, ao sinal dado, lançam-se para fora do campo.

VI – Saindo de repente por todas as portas, não dão tempo ao inimigo para compreender o que se passa nem para se realinhar...envolvidos por todos os lados, os gauleses são massacrados; de trinta mil homens, e mesmo mais, que se sabia terem tomado parte no assalto ao campo, mais de um terço foi morto; os outros, aterrorizados, lançam-se na fuga, sem sequer guardarem as elevações.

No dia seguinte, Galba mandou queimar todas as habitações do burgo e tomou o caminho de regresso à Província; nenhum inimigo o deteve nem lhe atrasou a marcha. Trouxe a sua legião sem perdas até aos nantuates e de lá aos Alóbrogos, onde passou o Inverno.

VII – César partira no começo do Inverno para a Ilíria.

O jovem Públio Crasso, com a VII legião, fora invernar entre os andes, na proximidade do Oceano. Faltando o trigo naquelas paragens, enviou um grande número de prefeitos e de tribunos militares aos estados vizinhos para lá procurarem trigo e víveres: Tito Terrasídio, entre outros foi enviado aos unelos; Marco Trébio Galo aos coriosolitas; Quinto Velânio com Tito Sílio aos vénetos.

VIII – Este último povo é bem de longe o mais poderoso de toda esta costa marítima: os vénetos possuem o maior número de navios, com os quais traficam na Bretanha, e superam os outros povos pela sua ciência e pela experiência de navegação; ocupam, de resto, neste grande mar violento e tempestuoso, o pequeno número de portos que ali se encontram e têm por tributários quase todos aqueles que navegam habitualmente nestas águas.

Os vénetos retiveram Sílio e Velânio, pensando recuperar por este meio os reféns que tinham entregue a Crasso. Levados pelo seu exemplo, os seus vizinhos detêm Trébio e Terrasídio.

Enviando uns aos outros deputados, comprometem-se por intermédio dos seus chefes a nada fazerem senão de comum acordo e a correrem todos a mesma sorte; instam as outras cidades a conservar a liberdade que tinham recebido dos seus pais, em lugar de suportar o jugo dos romanos. Toda a costa é bem depressa ganha para esta causa e uma embaixada comum é enviada a Públio Crasso, para o convidar a restituir os reféns, se queria que lhe restituíssem os seus oficiais.

IX – Informado dos acontecimentos por Crasso, César ordena que construam, enquanto o esperam – porque estava muito longe (mas não diz aonde) – navios de guerra no Liger, que recrutem remadores na Província e procurem marinheiros e pilotos.

Logo que a estação lho permitiu, César partirá para junto do exército (em que data? Primavera ou Verão? Estava então em Luca. Muito provavelmente, César terá “entrado em campo” apenas no final da campanha, já a meio do Verão).

Os vénetos, assim como os outros Estados, tratam dos seus preparativos guerreiros e providenciam sobretudo no equipamento dos seus navios.

A sua esperança era tanto maior quanto a natureza do país lhes inspirava muita confiança. Sabiam que os caminhos de terra estavam cortados pela maré-cheia e por baías, que toda a navegação era entravada pela ignorância em que estávamos dos locais e do pequeno número dos portos; pensavam que a falta de víveres nos tornava impossível toda a estada prolongada entre eles e, mesmo que a sua expectativa fosse iludida de qualquer modo, que continuavam a ser os mais poderosos no mar. Sabiam que os romanos não tinham marinha, que não conheciam os ancoradouros nem os portos nem as ilhas dos países onde fariam a guerra, e que a navegação num mar fechado era muito diferente da navegação no vasto e imenso Oceano. Tomadas as suas resoluções, fortificam as praças e transportam o trigo do campo para estas praças; reúnem o maior número possível de barcos nos vénetos, contra os quais pensavam que César faria primeiro a guerra. Asseguram-se para esta guerra da aliança dos osismíos, dos lexóvios, dos namnetes, dos ambiliatos (Ambiliati; um pequeno Estado da Céltica, que alguns identificam como o dos Ambibarii; e que outros situam ao sul dos andes, na margem esquerda do Loire, na parte meridional do departamento de Maine-et-Loire), dos mórinos, dos diablintes, dos menápios.

X – César pensou que precisava de dividir o seu exército e reparti-lo por uma mais ampla extensão.

XI – Assim, envia com a cavalaria Tito Labieno, seu lugar-tenente, aos tréveros, povo vizinho do Reno; encarrega-o de vigiar os remos e os outros belgas, de os manter no dever, e de fechar a passagem do rio aos germanos que, dizia-se, tinham sido chamados pelos belgas.

Ordena a Públio Crasso que parta para a Aquitânia com doze coortes e numerosa cavalaria.

Envia o seu lugar-tenente Quinto Titúrio Sabino com três legiões aos unelos, curiosolitas e aos lexóvios (Lexovii; região de Lisieux), para manter este lado em respeito.

Entrega ao jovem Décimo Júnio Bruto o comando da esquadra e dos navios gauleses fornecidos pelos pictavos (Pictavi ou Pictones; no antigo Poitou; capital: Lemonum, cujo nome vem de “olmo” = lemo; mais tarde chamada Pictavium - actual Poitiers), pelos santões e pelas outras regiões pacificadas.

César, com as tropas de infantaria, dirigiu-se (em que data?) para o território dos vénetos.

Décimo Júnio Bruto era filho do cônsul de 77 e de Semprónia; foi adoptado por Aulo Postúmio Albino. Em 49 comandará a esquadra de César em frente a Marselha, obtendo a vitória naval sobre Lúcio Domício; é governador da Gália Transalpina em 48. Reprime em 46 um levantamento dos belóvacos. Cumulado de favores por César, designado como um dos seus herdeiros, deixa-se no entanto arrastar pelo seu parente Marco Bruto na conspiração dos Idos de Março. Depois da morte de César, é-lhe disputado por António o governo da Cisalpina e suporta um longo cerco em Modena. Perseguido como assassino de César, é abandonado pelas suas tropas e por Octávio, sendo condenado à morte por António.

XII – Quase todas as cidades desta costa estavam situadas na extremidade de línguas de terra e sobre promontórios, e não ofereciam acesso a pé quando a maré estava cheia (o que se dá regularmente duas vezes em vinte e quatro horas), nem aos navios, porque na maré baixa os navios encalhariam nos baixios. Eis o duplo entrave ao cerco destas praças. Se por acaso, depois de trabalhos consideráveis, se conseguisse conter o mar com diques ou aterros e erguer obras de assédio até à altura das muralhas, os sitiados, quando desesperassem da sua fortuna, reuniriam numerosos navios, de que tinham grande quantidade, transportariam todos os seus bens e retirar-se-iam para as praças vizinhas, onde a natureza lhes oferecia as mesmas comodidades para se defenderem. Esta manobra foi-lhes tanto mais fácil, durante uma grande parte do Verão, quanto os nossos barcos estavam retidos pelo mau tempo e quanto era extremamente difícil navegar num mar vasto e aberto, sujeito a grandes marés, sem portos ou quase sem portos.

XIII – Os navios dos inimigos, esses estavam construídos e armados da maneira seguinte: a quilha era muito mais chata que a dos nossos, de modo que tinham menos a recear dos baixios e da vazante; as suas proas eram mais levantadas, e as popas apropriadas igualmente à força das vagas e das tempestades; os navios eram inteiramente de carvalho, para suportar fosse que choque fosse e fosse que fadiga fosse; as travessas tinham um pé de grossura e estavam presas por cavilhas de ferro da espessura de um polegar; as âncoras eram retidas por correntes de ferro; no lugar dos cordames, peles; no lugar das velas, couros delgados e maleáveis, quer porque lhes faltasse o linho ou não lhe conhecessem o uso, quer, o que é mais provável, porque julgassem pouco fácil de dirigir com as nossas velas navios tão pesados através das tempestades do Oceano e dos seus ventos impetuosos. Quando a nossa esquadra se encontrava com tais navios, a sua única vantagem era ultrapassá-los em velocidade e em agilidade; todo o restante era a favor dos navios inimigos, melhor adaptados e acomodados à natureza deste mar e à violência das suas tempestades; efectivamente, os nossos, com os seus esporões, não tinham poder algum sobre eles, de tal modo eram sólidos, e a altura da sua construção fazia com que as frechas não os atingissem facilmente e, ao mesmo tempo, que fosse pouco cómodo arpoá-los. Acrescente-se a isto que, se o vento viesse a levantar-se, eles entregavam-se a ele, suportavam mais facilmente as tempestades, podiam fundear com toda a segurança nos baixios e, se a vazante os abandonasse, não temiam os rochedos nem os escolhos, enquanto todos estes perigos eram para os nossos navios muito assustadores.

XIV – César, vendo que a tomada das suas cidades não podia impedir a retirada do inimigo nem fazer-lhe o menor mal, decidiu esperar pela sua esquadra. Logo que ela chegou e assim que foi avistada pelo inimigo, cerca de duzentos e vinte dos seus navios, inteiramente preparados e perfeitamente equipados, saíram do seu porto (na ria de Auray; a batalha ter-se-á dado na baía de Saint-Gildas) e vieram colocar-se na frente dos nossos.

Uma invenção preparada pelos nossos foi de um grande auxílio; eram foices extremamente cortantes, encabadas em compridas varas. Com estas foices agarravam e puxavam para si os cordames que prendiam as vergas aos mastros; cortavam-nos a força de remos; uma vez cortadas, as vergas caíam e os barcos gauleses, perdendo as suas velas e os aparelhos em que baseavam toda a sua esperança, eram de imediato reduzidos à impotência. O resto do combate não era mais que questão de coragem e nisso os nossos soldados tinham facilmente vantagem.

O exército, com César ali presente, ocupava todas as colinas e todas as elevações de onde a vista se estendia sobre o mar muito próximo.

XV – Logo que um navio ficava com as suas vergas abatidas, dois ou três dos nossos rodeavam-no e os nossos soldados subiam à viva força à abordagem, Vendo isto, os bárbaros, que haviam perdido uma grande parte dos seus navios e não tinham resposta para esta manobra, tentaram a salvação na fuga; e já se dispunham a aproveitar os ventos, quando, de súbito, sobreveio uma calmaria que lhes tornou toda a manobra impossível. Os nossos atacaram e tomaram um por um quase todos os navios, e foi só um bem pequeno número deles que pôde, favorecido pelo cair da noite, alcançar terra. A batalha tinha durado desde a quarta hora do dia até perto do pôr-do-sol.

XVI – Esta batalha pôs termo à guerra dos vénetos e de todos os estados marítimos desta costa: porque todos os homens jovens e mesmo todos os homens de idade madura, distintos pela sua craveira ou pela sua sabedoria, estavam reunidos ali, e tinham concentrado além disso, naquele único ponto, tudo o que tinham de navios, e esta perda não permitia aos outros qualquer outro meio de retirar ou de defender as suas praças. Renderam-se assim, corpos e bens, a César.

César decidiu dar um exemplo severo, que ensinasse os bárbaros, de futuro, a melhor respeitar o direito dos embaixadores. Ordenou a morte de todo o senado e vendeu os restantes em hasta pública.

XVII – Quinto Titúrio Sabino havia entrado no território dos Unelli. Estes tinham à cabeça Viridorix(ou Viridovis), que também comandava todos os Estados revoltados e dispunha de um numeroso exército.

Poucos dias depois, os aulercos eburovices e os lexóvios, depois de terem massacrado o seu senado, que se opunha à guerra, fecharam os seus portos e juntaram-se a Viridorix; além disso, uma multidão considerável viera de todos os pontos da Gália, homens cheios de crimes e bandidos que a esperança do saque e o amor da guerra arrancavam à agricultura e aos seus trabalhos diários.

Sabino estava acampado num terreno em todos os aspectos favorável e nele se encerrara; Viridorix, postado na frente dele a uma distância de duas milhas, todos os dias deslocava tropas e oferecia batalha, de modo que Sabino atraía a si o desprezo do inimigo e até já o sarcasmo dos nossos soldados. De tal modo deu a impressão de ter medo, que o inimigo já se atrevia a vir até ao pé do nosso entrincheiramento. Na realidade, se agia assim, era por pensar que não devia combater com uma tão grande multidão, sem ter por si a vantagem do terreno ou alguma ocasião favorável.

XVIII – Ficando bem estabelecida a impressão de que tinha medo, escolheu um homem hábil e fino, um daqueles gauleses que tinha junto de si como auxiliar; persuade-o, com grandes presentes e promessas, a passar-se para o inimigo e dá-lhe instruções quanto ao que deve fazer. Este chega dando-se como trânsfuga e descreve o terror dos romanos; diz que o próprio César está em dificuldade com os vénetos; que, sem mais tardar, Sabino, na noite seguinte, levantará o campo em segredo para o ir socorrer. A esta notícia todos exclamam que não se deve deixar perder tão bela ocasião: é preciso marchar sobre o campo; não deixam sair do conselho Viridorix e os outros chefes sem que tenham dado a ordem de pegar em armas e atacar o campo; amontoam faxinas e ramadas para encher os fossos dos romanos e marcham contra o campo (porque é que não esperaram pela suposta saída de Titúrio?).

XIX – O campo estava sobre uma elevação (talvez nos arredores de Vire), a que se tinha acesso por uma suave subida de cerca de mil passos. Percorreram-na em corrida rápida, a fim de que os romanos dispusessem do menos tempo possível para se recomporem e empunharem as armas, e chegaram sem fôlego.

Sabino ordena aos seus que saiam bruscamente pelas duas portas e que caiam sobre o inimigo, embaraçado com os fardos que transporta. Este nem sequer aguentou o primeiro embate, entrando de imediato em fuga. Pereceram em grande número; a cavalaria flagelou o resto e só muito poucos lhe escaparam.

Assim, de uma só vez, foi Sabino informado do combate naval e César da vitória de Sabino. Todos os Estados procuraram imediatamente Titúrio.

XX – Públio Crasso havia chegado à Aquitânia. Vendo que teria de fazer a guerra nos mesmos locais onde, poucos anos antes, o lugar-tenente Lúcio Valério (por volta de 80) fora vencido e morto, e onde o procônsul Lúcio Mânlio tivera de fugir, depois de ter perdido as suas bagagens, agiu com prudência.

Providenciou portanto às provisões de trigo; reúne auxiliares e cavalaria, convoca além disso, individualmente, um grande número de bravos soldados de Tolosa e de Narbona, e conduz o seu exército para as terras dos sontiates (sudoeste do departamento de Lot-et-Garonne e uma parte dos departamentos de Landes e Gers).

À notícia da sua chegada, os Sontiates (ou Sotiates) reúnem numerosas tropas e cavalaria (a sua principal força), e atacam o exército em marcha. Travam primeiro combate com a cavalaria; depois, como esta tivesse sido repelida e os nossos a perseguissem, descobrem de súbito as suas forças de infantaria, postas de emboscada num pequeno vale; carregam sobre os nossos soldados dispersos e o combate recomeça.

XXI – O combate foi longo e encarniçado. Por fim, cheios de ferimentos, os inimigos põem-se em fuga.

Depois de ter morto um grande número, Crasso, sem se deter, pôs cerco à praça-forte dos sontiates. Como resistissem com coragem, mandou avançar os manteletes e as torres. Os sitiados faziam ora surtidas ora praticavam minas nos aterros e nos manteletes (porque os aquitanos são muito hábeis nestas obras, estando o seu país cheio de minas de cobre e pedreiras); mas, tendo compreendido que, perante a diligência dos nossos, estes meios não lhes permitiam resultado algum, enviam deputados a Crasso e pedem-lhe que aceite a sua submissão. Obtêm-na e, a ordem sua, entregam-lhes as armas.

XXII – Enquanto todos os nossos estavam atentos a esta rendição, de um outro lado da praça, apareceu o chefe supremo Adiatuano (moedas eram cunhadas em seu nome: REX ADIETVANVS; na outra face, SOTIOTA), com seiscentos homens devotados à sua pessoa, daqueles que se chamamsoldurii (a condição destes homens é a seguinte: gozam de todos os bens da vida com aqueles a que se uniram pelos laços da amizade; se o seu chefe perece de morte violenta, eles partilham a mesma sorte ao mesmo tempo que ele, ou então eles próprios se matam; e, em memória de homem, não se encontrou ainda ninguém que se recusasse a morrer quando o amigo a que se devotara estava morto.) Foi com esta escolta que Adiatuano tentou uma surtida: um clamor se elevou do lado das nossas defesas; os nossos soldados correram às armas; depois de um violento combate, Adiatuano foi repelido para a praça; mas não deixou de obter de Crasso as mesmas condições que os outros.

XXIII – Depois de ter recebido as armas e os reféns, Crasso partiu para o país dos Vocates (pequeno povo da Aquitânia que se compara aos Boiates, de que fala Plínio) e dos Tarusates (região de Tartas, nas Landes, entre Dax e Mont-deMarsan).

Os bárbaros, ao saberem que em poucos dias uma praça igualmente defendida pela natureza e pela arte caíra nas nossas mãos, de todas as partes enviam deputados, trocam juramentos, reféns e prepararam as suas forças. Enviam também deputados aos Estados que pertencem à Espanha Citerior, vizinha da Aquitânia; dela obtêm socorro e chefes.

Escolheram como chefes aqueles que mais tempo haviam servido sob as ordens de Quinto Sertório e passavam por ser muito hábeis na arte militar. Eles têm a maneira romana de estabelecer as suas posições, de fortificar os seus campos, de nos cortar os víveres.

Crasso apercebeu-se disso; não podia dividir as suas tropas, pois que eram pouco numerosas; enquanto que o inimigo podia movimentar-se até longas distâncias e controlava as estradas, mantendo sempre no seu campo uma guarnição suficiente à defesa. Era por esta razão que o reabastecimento dos romanos de tornava difícil, e que o número de inimigos aumentava de dia para dia.

Assim, Crasso pensou que não devia hesitar em travar batalha. Apresentou isto em conselho, e quando viu que todos pensavam como ele, decidiu combater no dia seguinte.

XXIV – Ao nascer do dia, alinhou na frente do campo todas as suas tropas, distribuídas em duas linhas; colocou no meio os auxiliares e esperou para ver o que o inimigo faria.

Estes achavam mais seguro obter a vitória sem vibrar um golpe, ocupando as estradas e cortando-nos os víveres; e, se a falta de trigo forçasse os romanos a bater em retirada, pensavam atacá-los em plena marcha, embaraçados com os seus comboios e carregados com as suas bagagens. Mantiveram-se, pois, no seu campo.

Vendo isto, Crasso, como as hesitações deles e o seu ar de terem medo houvessem excitado o ardor das nossas tropas e se fazia ouvir o brado unânime de que não se devia esperar mais, discursou aos seus e, cedendo aos desejos de todos, marchou sobre o campo inimigo.

XXV – Aí, enquanto uns enchiam os fossos, outros, lançando uma saraivada de frechas, expulsavam os defensores do entrincheiramento das nossas linhas de defesa; e os auxiliares, com os quais Crasso não contava muito para o combate, forneciam pedras e frechas, traziam torrões de terra para o aterro e faziam acreditar, assim, que combatiam; o inimigo, esse lutava com firmeza e sem medo algum, e lançava de cima frechas que não se perdiam. Entretanto, cavaleiros, havendo feito a volta ao campo inimigo, relataram a Crasso que do lado da porta decumana o campo estava pior guarnecido e oferecia um acesso fácil.

XXVI – Crasso ordena aos prefeitos da cavalaria que façam sair as coortes de guarda ao campo; estas fazem um longo desvio, escondendo assim a sua marcha aos olhos do inimigo. Enquanto todos se entregavam à batalha, as coortes chegam rapidamente ao sector da porta decumana do entrincheiramento inimigo; forçam-no e estabelecem-se no campo. Avisados pelos gritos que se faziam ouvir daquele lado, os nossos redobram de ardor no ataque. Os inimigos, envolvidos por todos os lados, perdendo completamente a coragem, esforçam-se por transpor as linhas de defesa e buscam a salvação na fuga. A cavalaria perseguiu-os em campo raso e, dos 50.000 aquitanos e cântabros (ocupando, grosso modo, a actual Biscaia) que compunham o exército, quase nem um quarto escapou.

XXVII – A notícia deste combate, uma grande parte da Aquitânia rendeu-se a Crasso e por sua iniciativa enviou reféns. Neste número estiveram os tarbelos, os bigerrões, os ptiânios, os vocates, os tarusates, os elusates, os gates, os auscos, os garonos, os sibuzates, os cocosates.

Um pequeno número de Estados afastados, fiando-se na estação adiantada, não seguirá este exemplo.

Tarbelli na antiga região do Labourd, nos Baixos-Pirenéus. Os Bigerrones ou Bigerriones, no alto vale do Adour, deixaram o nome à região de Bigorre, no actual departamento dos Altos Pirenéus. Os Ptianii viveriam na região de Orthez. Elusates, no noroeste do departamento de Gers; capital, Elusa; hoje, Eause. Os Gates viviam na confluência do Gers e do Garona; actual departamento de Gers. Ausci, entre os elusates, a oeste, e os tolosates, a leste; no território depois chamado Armagnac; departamento do Gers; a sua capital, Iliberris, será denominada Augusta Auscorum; hoje, Auch. Garumni, nas encostas dos Pirenéus, junto às nascentes do Garumna, no actual departamento do Alto Garona. Os Sibuzates habitavam o país de Saubusse, entre Bayonne e Dax. Cocosates, na parte meridional do departamento da Gironde e no noroeste do de Landes.

XXVIII – já com o Verão perto do seu fim, César decide atacar os mórinos e os menápios, porque nunca lhe tinham enviado deputados a pedir a paz (?!).

Estes povos seguiram uma táctica guerreira inteiramente diversa da dos outros gauleses. Com efeito, vendo que as maiores nações que tinham lutado contra César haviam sido repelidas e vencidas, e possuindo um país onde se sucedem florestas e pântanos, para lá transportaram corpos e bens. César, chegado à orla destas florestas, tinha começado ali a entrincheirar-se, sem que um só inimigo tivesse aparecido; porém, de repente, no momento em que os nossos estavam dispersos no trabalho, os bárbaros saíram de todos os cantos da floresta e caíram sobre eles. Os nossos soldados, logo empunhando as armas, repeliram-nos para as florestas e mataram-nos em grande número, perdendo eles próprios alguns homens, por terem levado demasiado longe, em lugares difíceis, a perseguição ao inimigo.

XXIX – Nos dias seguintes César iniciou o abate da floresta; e para impedir um ataque de flanco aos nossos soldados, mandava amontoar toda a madeira cortada na frente do inimigo, nos dois flancos, para com ela fazer uma fortificação. Já os nossos soldados estavam senhores dos rebanhos e das últimas bagagens do inimigo (farronca de César), que se internava na espessura das florestas, quando as constantes tempestades forçaram a interromper o trabalho, e, não parando a chuva, já não foi possível manter os soldados nas tendas. Assim, depois de ter devastado todos os campos, queimado as aldeias e as construções, César trouxe o seu exército e estabeleceu-o em quartel de Inverno entre os aulercos e os lexóvios, bem como entre os outros povos que acabavam de nos fazer a guerra (?!).