Capítulo XXIV - A revolta de Catilina. O primeiro triunvirato

O ESTERTOR DO MOVIMENTO DEMOCRÁTICO. O PRIMEIRO TRIUNVIRATO.

 

ABOLIÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE SILA.

 

Em Roma, Pompeu e Crasso são os senhores de facto da situação. Se bem que existisse entre eles uma profunda rivalidade, a oposição do senado obrigá-los-á a concertar um pacto, na mira do consulado para 70.

Os chefes vitoriosos (imperatores) não haviam licenciado os seus exércitos, procurando com eles ameaçar e atemorizar o senado. Ao povo (que os elegerá), prometem solenemente a abolição da constituição de Sila e o completo restabelecimento do ordenamento democrático. Deste modo os mais conspícuos dos silianos se metamorfosearam em democráticos.

É nesse ano de 71 que Cícero desencadeia o processo contra as depredações de Verres, que Sila nomeara propretor na Sicília. Nas “Verrinas”, Cícero denunciará todo o regime de Sila.

 

Já eleitos cônsules, por lei especial, abolem todas as limitações que haviam sido fixadas à autoridade dos tribunos da plebe (Lex Pompeia Licinia).

Em sintonia com Pompeu e Crasso, o pretor Lúcio Aurélio Cota promove uma ampla reforma judicial. A partir de então os colégios judiciais passam a compor-se de um número idêntico de senadores, de cavaleiros e dos chamados tribuni aerarii (“tribunos do erário”).

As arrematações dos impostos na Asia aos publicanos, que Sila abolira, são restabelecidas.

 

Os “tribunos do erário” eram ricos plebeus que, na escala honorífica, vinham imediatamente a seguir aos cavaleiros. De início o termo designava os funcionários especiais encarregados de determinar e recolher os impostos nas tribos (ajudantes dos questores), depois, os plebeus ricos em geral.

 

Ainda em 70, os censores são de novo eleitos. Sessenta e quatro senadores, quase todos antigos protegidos de Sila, foram destituídos.

 

A GUERRA DE POMPEIUS CONTRA OS PIRATAS.

 

A pirataria espalhara-se por todo o Mediterrâneo, desde as regiões orientais às costas da Hispania. A temeridade dos bandidos do mar era tal que ousaram atacar Óstia, saqueando-a e destruindo os navios ancorados no porto. Por causa deles (e da especulação), o preço do trigo aumentou consideravelmente.

 

Os chamados piratas “cilícios” não tinham as suas bases apenas naquela região da Ásia Menor. A título de exemplo, a ilha de Creta foi um ninho de piratas até 68/67, aquando da sua conquista pelos romanos.

 

Aproveitando o contexto, nos inícios de 67, Aulo Gabínio, tribuno da plebe, propõe que um dos antigos cônsules seja investido de poderes proconsulares “alargados”, por três anos, sobre todo o Mediterrâneo e sobre as suas costas, até a uma distância do mar de 50 milhas. Teria o direito de escolher quinze legados com a categoria de pretor, comandando uma frota de 200 naves e as tropas que fossem consideradas necessárias. Não nomeou candidato, mas toda a gente percebeu que por detrás de Gabínio estava Pompeius.

A proposta suscitou a viva oposição do senado. Corria então a piada de que Pompeius navarca (almirante) era o prelúdio para Pompeius monarca.

Apesar da encarniçada oposição dos optimates, a rogatio foi aprovada (lex Gabinia), outorgando ainda mais poderes ao “candidato não nomeado”. Os legados passavam a vinte e quatro, as naves a 500, fixando-se a quantidade de tropas em 120.000 infantes e 5.000 ginetes (Pompeius tentava “tornar-se Sila”...por via legislativa!). Após a aprovação da lei, o “candidato não  nomeado”é eleito para a função. De imediato baixaram os preços do trigo (sinal de que em Roma também havia um “ninho de piratas”).

 

Em quarenta dias, Pompeius limpa o Mediterrâneo ocidental de piratas (talvez porque não houvesse muito que limpar), logo enviando os seus legados ao Oriente. Rapidamente o próprio Pompeius se lhes juntará. Os ninhos de piratas cilícios levaram mais algum tempo a liquidar, Pompeius o Grande teve de gastar nisso quarenta e nove dos seus dias. A rapidez da acção explica-se pelo recurso à diplomacia e ao trato. Pompeu perdoava a vida e deixava em liberdade a todos aqueles que depusessem as armas contra os romanos. Em suma, a todos os que “tratassem” com ele. Mas, e “justificando” a lex Gabinia, 10.000 piratas (ou lá quem haja sido) morrem ou caem em cativeiro, 800 barcos são capturados (bastantes deles navios mercantes) e 120 povoações destruídas.

 

A TERCEIRA GUERRA COM MITRIDATES. POMPEIUS NO ORIENTE.

 

Já em 83 L. Licínio Murena, que havia substituído Sila no Oriente, a pretexto de que Mitridates preparava uma guerra com a Capadócia, desencadeara operações militares contra o Ponto. Porém os romanos são derrotados e em 82, a intervenção de Sila, de novo a paz é restabelecida.

 

Em 75 Nicomedes III da Bithynia morre, deixando, também ele, o seu reino em herança ao povo romano. Aproveitando o descontentamento da população daquele reino e as dificuldades dos romanos nas Espanhas, Mitridates invade a Bitínia no ano de 74. Simultaneamente, os povos trácios do Danúbio (com quem Mitridates mantinha relações) atacam na Macedónia.

 

Roma envia à Ásia Menor os dois cônsules de 74, Marco Aurélio Cota e Lúcio Licínio Lúculo, o antigo questor de Sila e um dos homens mais ricos à época em Roma (era irmão do Marco Licínio Lúculo que em 71 acudirá a Crasso). Cada um dos cônsules dispunha de uma legião.

 

M. Aurélio Cota, logo derrotado, é bloqueado em Calcedónia (Chalcedon, cidade costeira da Bitínia). Mas Lúculo, o antigo braço direito de Sila, reforça as suas forças recrutando tropas locais, que paga com os tributos lançados sobre a própria Bitínia.

Mitridates é obrigado a retirar para leste. Lúculo lança-se-lhe no encalço com a frota que havia formado nas cidades gregas da costa ocidental da Ásia Menor. Navegando ao longo da costa, apodera-se das cidades da Bitínia e invade o Ponto, que Mitridates abandonara à sua sorte.

Nos anos de 72 e 71 Lúculo pilha e submete o reino do Ponto. A maioria das praças-fortes são-lhe entregues pelos seus comandantes. O próprio filho de Mitridates, Mácares, governador do Bósforo (na actual Crimeia e faixas costeiras adjacentes), que por muito tempo ainda irá prestar auxílio por mar a Sinope, a capital do Ponto assediada pelos romanos, acabará por atraiçoar o pai, enviando a Lúculo, em sinal de submissão, uma coroa de ouro.

As grandes cidades gregas de Heracleia do Ponto e Sinope, que ofereceram a mais encarniçada resistência, são literalmente arrasadas pelos romanos.

 

Com a campanha de L. L. Lúculo, os romanos fazem-se presentes, pela primeira vez, na região do Ponto Euxino (Euxinus Pontus, o Mar Negro). Na sua costa sul constituem-se as províncias da Bitínia e do Ponto. Na costa ocidental, o irmão, Marco L. Lúculo, em operações contra os trácios e os bastarnos, atravessa os Balcãs e chega à foz do Danúbio. As colónias gregas costeiras – Istros, Tomi, Kallatis, Odessos (litoral da actual Roménia) e outras – são obrigadas a integrar a aliança romana.

 

Mitridates havia-se refugiado junto do genro, Tigranes o Grande da Arménia. Este havia submetido o que restava da monarquia selêucida, conquistando parte da Cilícia e a Síria meridional até às fronteiras com o Egipto. Intitulara-se “rei dos reis”e era um dos soberanos mais poderosos no Oriente.

 

Lúculo invade a Arménia, marchando directamente sobre a capital, Tigranocerta (num afluente do Tigre, no curso superior deste rio), que assediou. Tigranes acorre com um grande exército e é derrotado (Outono de 69). Os romanos ocupam Tigranocerta. A Síria é libertada do domínio arménio, restaurando-se a monarquia selêucida.

Tigranes e Mitridates fogem para a antiga capital arménia, Artáxata (actual Artasat; próxima de Jerevan), sobre o rio Araxes (actual Araks).

Em 68 Lúculo pretende marchar em sua perseguição, mas os seus soldados quase se amotinam, exigindo-lhe o regresso a Itália.

Em Roma, Lúculo era hostilizado pelos equites, defraudados nas suas expectativas de rapina das regiões conquistadas, e pelos democráticos, que o viam como um partidário de Sila. Em 67 é enviado para o substituir Mânio Acílio Glabrião, cônsul (democrático) desse ano.

 

Mitridates passa então à ofensiva e reconquista o Ponto e a Capadócia. Nos inícios de 66, Caio Manílio, tribuno da plebe, propõe a investidura de Pompeius no mando supremo (imperium maius) no Oriente, submetendo-se todos os demais às suas ordens e concedendo-lhe o poder de declarar a guerra e concertar a paz. Mais uma vez o senado se opõe a uma tal rogatio. Mais uma vez a assembleia popular a aprova (lex Manilia), apesar de os seus detractores a declararem “contrária às tradições dos antepassados, porque investia um homem de poderes sem limites” (infinitum imperium).

Pompeius, que se encontrava na Cilícia, reúne os restos das tropas de Lúculo e exige a Mitridates a rendição incondicional (que este recusou). Ao mesmo tempo negoceia com Phraates, rei dos partos (até então neutral). O parto acaba por se comprometer a atacar a Arménia, em troca de algumas concessões territoriais na Mesopotâmia.

Os romanos avançam e Mitridates, então no Ponto oriental, é obrigado a retirar. Pompeu alcança-o na Arménia, sobre o curso superior do Eufrates, onde o derrota numa batalha nocturna.

Mitridates, com alguns companheiros, busca refúgio junto a Tigranes, mas este recusa-lhe asilo. Os Parthi, mantendo a promessa feita a Pompeu, haviam atacado a Arménia.

O rei do Ponto recolhe-se à Cólquida, onde passa o Inverno de 66/65. Depois, marchando ao longo da costa oriental do Ponto Euxino, chega em 65 ao Bósforo, onde depõe e obriga a suicidar-se o filho que o traíra, Machares.

Tenta entabular negociações com Pompeu, mas este volta a exigir-lhe a rendição incondicional. Então, já com setenta anos de idade, concebe um novo plano: reunir as tribos bárbaras das costas setentrionais do Mar Negro e do Danúbio e invadir com elas a Itália. Lançando-se na sua execução, organiza um exército de 36.000 homens, composto em boa parte por escravos citas, e constrói uma frota de guerra. Acumula nos seus entrepostos militares grandes quantidades de trigo. Os recursos para custear a expedição, Mitridates extorquiu-os aos seus súbditos, aplicando para isso medidas de extrema violência.

Phanagoria (sudeste do Mar de Azov) revolta-se. Chersoneso, Theodosia (Crimeia) e outras cidades seguem-na.

Desesperado e em fúria, Mitridates lança-se em cruéis represálias sobre os próprios familiares. O seu filho predilecto, Fárnaces, põe-se então à cabeça da revolta. O exército e a frota aderem-lhe. Panticapea, a capital, abre as suas portas a Pharnaces; com Mitridates sitiado no palácio real (a montanha onde se situava o palácio conservou o nome deste rei).

Vendo-se perdido, após haver obrigado as mulheres e as filhas a envenenarem-se, Mitridates suicidou-se (ano de 63). Fárnaces terá enviado o cadáver do pai a Pompeu.

 

Enquanto estes sucessos ocorriam na Taurídia, Pompeu chegara até Artaxata, obrigando Tigranes a submeter-se a Roma e a renunciar a todas as suas conquistas (Tigranes terá pago 6.000 talentos pela paz e pelo título de “amigo do povo romano”).

De seguida os romanos invadem a Iberia (actual Geórgia; a região compreendida entre o Cáucaso e o rio Araks) e a Albania (no actual Azerbeijão), combatendo as tribos montanhesas locais. Mas as dificuldades da guerra em montanha obrigaram Pompeu a desistir da expedição, contentando-se com uma declaração formal de submissão dessas tribos.

Regressando ao Ponto em 64, Pompeu transforma a Bitínia e o Ponto numa única província romana. Pharnaces será depois confirmado no trono do Bósforo.

Em 63 Pompeu está na Síria. Ali não reconhece os actos de Lúculo (devolução do trono a um dos selêucidas), considerando o país como uma antiga possessão de Tigranes e, por direito de conquista, pertencente agora ao povo romano. A Síria passou assim a província romana. Ao último dos Selêucidas, Antíoco, Pompeu deixou apenas o pequeno território de Comagena (Comagene), no leste dos seus antigos domínios.

Intervém nessa época nos assuntos da Judeia, onde os dois pretendentes da dinastia dos Macabeus, os irmãos Hircano e Aristobolo, se digladiavam pelo poder. O primeiro era apoiado pelos fariseus (os “Separados”) – o partido do antigo clero –, que pretendiam um comunitarismo eclesiástico, autónomo da autoridade “laica” (fosse ela qual fosse), e defendiam uma ortodoxia religiosa dogmática, com base na tradição oral. A Aristobolo sustentavam-no os saduceus, considerados heréticos por recusarem alguns aspectos da doutrina tradicional. Era o “partido” dos helenizados, dos comerciantes, das camadas sociais abastadas e dos círculos políticos e religiosos então dominantes, defendendo uma sociedade mais secularizada.

Pompeu apoiou Hircano e os fariseus. Aristobolo rendeu-se-lhe e Jerusalém abriu as suas portas aos romanos. Mas uma parte dos saduceus recusou submeter-se, apoderando-se do templo.

O cerco do templo prolongou-se por três meses até que, num dia de descanso sabático, os romanos o tomassem. Pompeius, curioso, penetrou no sanctum sanctorum, onde apenas o grão sacerdote podia entrar.

A Judaea foi onerada com um tributo e integrada na província da Síria, conservando Hircano (tornado grão sacerdote de Jerusalém) uma certa autonomia.

 

Na Ásia Menor Pompeu restaurou ou criou ex novo uma série de principados “independentes”. Entre outros, a Capadócia, a Paflagónia e a Galácia (Galatia).

 

Por onde passou Pompeius comportou-se como representante plenipotenciário do povo romano. Sem nunca ter pedido a opinião do senado, devastou regiões, castigou os inimigos e premiou os amigos de Roma, depôs e pôs soberanos sobre o trono.

 

Em finais de 62, desembarca com as suas tropas em Brundísio.

 

A REVOLTA DE CATILINA.

 

Lúcio Sérgio Catilina (nascido em 108) havia sido um apoiante de Sila, mas não enriquecera com as proscrições, como o haviam feito Pompeu e Crasso, e virá a ser profundamente hostil à oligarquia no poder. Em 68 fora pretor. No ano de 67, governador em Africa. No termo do seu mandato é levado perante tribunal, por abuso de poder.

Em 66, quando apresenta a sua candidatura a cônsul para 65, excluem-no por ainda se encontrar sob juízo.

 

Caio Júlio César (nascido a 12 de Julho do ano 100) provinha de uma das mais nobres estirpes patrícias. Os Júlios diziam-se descendentes, através de Eneias e Ascânio – Julo, da própria Afrodite. Mas a sua família (Caesar) não era rica nem tinha grande influência política.

Uma sua tia (Júlia) havia casado com Mário. César, por sua vez, casara com a filha de Cinna, Cornélia. Estes vínculos familiares definiram-lhe em boa parte o início da carreira.

Sila queria obrigá-lo a divorciar-se de Cornélia, mas César recusou-se a tal, escondendo-se então no antigo país sabino. Vários amigos e parentes influentes intercederam a seu favor junto de Sila e o jovem César foi perdoado.

Preferindo contudo afastar-se, César parte para a Ásia Menor, onde iniciou a sua carreira militar.

À morte de Sila regressa a Roma. Assumindo-se como um homem dos democráticos, estreia-se no foro na acusação a Cornélio Dolabela, um dos principais sequazes do ditador. Mas logo de novo parte para o Oriente, frequentando em Rodes a escola de Molão (célebre retórico e um dos mestres de Cícero).

Em 74 já se encontra outra vez em Roma, onde prossegue a carreira política como democrático e partidário de Pompeu.

Em 69, à morte de sua tia Júlia, sendo questor, organiza-lhe solenes exéquias, ousando levar no cortejo fúnebre as imagens de Mário, que nunca mais haviam sido vistas em público. Algum tempo depois fará erigir no Capitólio estátuas douradas a Mário e à “Vitória”, provocando escândalo no senado. Mostra-se possuidor de uma rara eloquência, de modos afáveis e de uma enorme generosidade. Edil curul em 65, gasta o que restava da sua fortuna e contrai inúmeras dívidas para organizar espectáculos para o povo (e também em despesas pessoais; pôs os banqueiros romanos a financiar-lhe a carreira política).

 

No ano de 66, quando César é eleito edil e Crasso, censor (ambos para 65), os candidatos democráticos ao consulado, P. Cornélio Sila (sobrinho do falecido ditador) e P. Autrónio Peto, sendo acusados de haverem comprado os eleitores, vêm o senado invalidar-lhes a eleição. Em sua substituição o senado fez eleger duas personalidades da sua confiança, L. Cota e L. Torcato.

 

Como é natural, os populares hão-de ter-se movimentado, procurando opor-se à anulação da eleição dos cônsules. Segundo as fontes, pretenderiam levar a cabo um golpe de Estado. Nele teria participado uma boa parte da chamada “juventude dourada” que, crivada de dívidas, esperava com o golpe ver-se livre desse “fardo”. Rumores insistentes afirmavam que por detrás dos conspiradores estariam César e Crasso. As fontes supõem que num determinado dia (talvez o de 1 de Janeiro de 65, na “tomada de posse”), os cônsules e os senadores mais influentes seriam assassinados. Logo Crasso seria nomeado ditador, com César como seu magister equitum.

Duas tentativas de efectuar o golpe teriam falhado pela ocorrência de imprevistos. O plano acabaria por transpirar para a opinião pública e, por isso, teria sido postergado sine die.

O governo não deteve os conjurados, porque não possuía quaisquer provas da conjura e porque temia a implicação de personagens influentes, como Crasso (ou porque a pretensa conjura não passou de uma atoarda). A “isto” se chama a “primeira conjura de Catilina” (se bem que o seu papel nas movimentações dos democráticos à época haja sido de ordem secundária).

 

Em 64, por fim absolvido da acusação de corrupção, Catilina de novo apresenta a sua candidatura às eleições consulares (para 63). É apoiado pelos democráticos, por Crasso e César (que angariaram o dinheiro para a campanha eleitoral). O segundo candidato dos democráticos era Caio António, uma personagem obscura, um ex sequaz de Sila e oportunista que se passara aos populares na mira do consulado.

A luta eleitoral foi renhida, com optimates e equites a juntarem forças contra Catilina. São eleitos António e Cícero, um “homem novo”, proveniente da ordem equestre.

Politicamente inconstante e olhado com hostilidade pelos círculos senatoriais, Cícero teve no entanto os votos dos optimates, que o elegeram como “mal menor”.

 

Ainda antes de iniciar funções, já Cícero havia “comprado” o colega democrático, cedendo-lhe a rendosa província da Macedónia (para o proconsulado).

 

Os chefes dos populares, perdidas as eleições, resolvem mudar de táctica, passando à “via legislativa”. Públio Servílio Rulo, tribuno da plebe, apresenta um grandioso (e quimérico) projecto de reforma agrária (e também de especulações financeiras). Propõe a venda de uma grande quantidade de terras do ager publicus na Itália e nas províncias para, com o dinheiro arrecadado (a que se somaria uma parte das receitas provinciais e outras), comprar terras alodiais aos particulares e municípios da Itália. Estas terras, acrescentadas das terras estaduais que ficassem por vender na Itália, seriam distribuídas entre os cidadãos mais pobres, mas sem direito de alienação.

Previa-se, para cumprir este programa, a constituição de uma comissão de dez membros, eleitos para um mandato de cinco anos por dezassete das tribos, a serem designadas por sorteio. As candidaturas deviam ser apresentadas pessoalmente, ante o povo. Aos decênviros era concedido, entre outros largos poderes, o de comandarem tropas em caso de necessidade.

 

Com tal projecto a oposição visava colocar alguns dos seus homens (entre eles César e Crasso) numa posição de poder, pois certamente ganhariam uma parte dos dez mandatos nas eleições para a comissão agrária. Por outro lado, como era necessário apresentar a candidatura pessoalmente, Pompeu, então no Oriente, ficaria “de fora da corrida” (César já então havia “descolado” de Pompeu).

 

As intenções da rogatio eram claras e suscitaram a oposição de cavaleiros e optimates. Também a plebe urbana se opôs.

Os optimates temiam uma ditadura democrática. Fosse a de César, fosse a de Crasso, de Pompeu, de Catilina ou a de todos eles juntos.

Os cavaleiros andavam assustados com a campanha de agitação da “juventude dourada” e dos populares em prol da anulação das dívidas. Quanto às terras públicas, que muitos deles e dos nobres detinham com pingues proveitos (e que possivelmente consideravam como “suas”), a rogatio ameaçava arrancar-lhas das mãos ou, no melhor dos casos, obrigá-los-ia a comprar a terra que já possuíam em occupatio.

À plebe, indignou-a o argumento de que teria de trocar a alegre e divertida vida de Roma por uma existência de trabalhos numa qualquer comarca perdida de Itália.

Cícero deu eco a tudo isto nos seus três hábeis discursos contra o projecto de Rulo (começos de 63).

Desconhece-se o que aconteceu à rogatio, mas é bem provável que o próprio Rulo a haja retirado.

 

Para 62, e pela terceira vez, de novo Sérgio Catilina apresenta a sua candidatura ao consulado. A anulação das dívidas era a base do seu programa eleitoral, o que lhe fez ganhar partidários nos mais diversos estratos da população, desde os arruinados veteranos de Sila aos mais prestigiados senadores.

Os collegia das corporações profissionais e os “colégios de bairro” (estes últimos actuando na “clandestinidade”, pois haviam sido ilegalizados em 64), um autêntico “aparelho de base” dos populares que se estendia por numerosos municípios itálicos, apoiavam-lhe a candidatura. Em Roma o tribuno da plebe Béstia tratava de mobilizar o povo e as mulheres e os jovens desenvolviam uma intensa campanha em prol de Catilina.

Uma grande multidão de camponeses da Etrúria e de outras regiões vizinhas, seus apoiantes, concentra-se em Roma para as eleições.

Salústio (“Conjuração de Catilina”; 36-37): «...a plebe urbana...a juventude dos campos, que levava uma existência miserável e que ganhava o pão com o suor do seu rosto...e todo o povo em geral...Este contágio atingiu a maioria dos cidadãos...Toda a populaça ávida de mudanças aplaudia os intentos de Catilina». O próprio Cícero (segunda “Catilinária”; 20-21) confessará que o apoio à facção de Catilina provinha das multidões dos campos e das cidades, esmagadas e exasperadas pela miséria.

 

Dando como certa a vitória de Catilina, Cícero, com o apoio de boa parte dos equites e optimates, organiza a cabala eleitoral. As eleições são retardadas, de modo a provocar o regresso dos camponeses às suas terras e fazendo coincidir o acto eleitoral com a chegada a Roma dos soldados de Lúculo, vindos para participar no triunfo do seu general. Para se assegurar dos votos desses soldados, Cícero sacrifica o candidato que apoiava, Sérvio Sulpício, e promove a concentração de votos em Murena, que havia servido como lugar-tenente no exército de Lúculo.

Cícero previne-se também para “o pior” (a eleição de Catilina) com a sua lex Tullia. Entre outras coisas, a lei condenava ao exílio os candidatos que houvessem recorrido a manobras fraudulentas para assegurar a sua eleição.

Neutraliza ainda os sectores “democráticos” moderados, através de entendimentos com Crasso e os equites a ele ligados

 

No entanto Catilina continuava a ser o favorito. E Cícero encena então o melodrama da “conjuração de Catilina”. Na véspera das eleições (já muito tardiamente marcadas, dado que geralmente se verificavam em Julho), provoca o seu adiamento a pretexto de dar a conhecer ao senado factos de “uma extrema gravidade”. A 21 de Outubro, o dia em que se devia ter procedido à eleição dos cônsules, reúne-se o senado, com o cônsul Cícero a interpelar e a ordenar a Catilina que se explique quanto à “conjura que lhe fora revelada” por uma tal Fúlvia, amante de Quinto Cúrio, um dos democráticos. Sem prova alguma, não consegue que seja promovida qualquer acusação contra o candidato democrático. Porém, com o argumento de que estava em preparação um levantamento na Etrúria e noutras regiões (Cápua, Piceno, Apúlia) para 27 de Outubro, assim como a “chacina” dos optimates em Roma no dia seguinte, 28 de Outubro, arranca aos senadores a declaração da situação de perigo para a ordem pública e a concessão aos cônsules dos respectivos poderes ditatoriais (videant consules...).

 

A “mensagem” não podia ser mais clara. Segundo Cícero, que não apresentou prova alguma do que afirmava, Catilina havia preparado, para depois da sua vitória nos comícios eleitorais, a matança dos poderosos e o levantamento popular. De imediato são enviados destacamentos para a Etrúria, onde na cidade de Fésulas (Faesulae; actual Fiesole), Caio Mânlio, outrora partidário de Sila, desenvolvia uma intensa actividade organizativa em prol dos democráticos. Roma enche-se de patrulhas e guardas, como se a cidade estivesse em estado de sítio.

 

Apesar de tudo isto, Catilina ainda podia ser eleito. Cícero manipula então os próprios comícios eleitorais, que se realizaram no dia 28 de Outubro (a data da pretensa “chacina” dos optimates). Sendo o cônsul encarregado de os dirigir, apresenta-se nos comitia centuriata «revestido de uma larga e brilhante couraça» (“Pro Murena”, XXVI), e faz rodear o local dos comícios (o Campo de Marte) por uma guarda armada.

 

O resultado foi uma nova derrota de Catilina, sendo eleitos Licínio Murena e D. Júnio Silano.

Murena, candidato dos optimates, havia comprado de forma tão ostensiva os eleitores que provocou um enorme escândalo, levantando protestos até no seio da nobreza conservadora. Catão foi um dos que exigiu o seu julgamento. Mas, se lermos nas “entrelinhas” da sua defesa por Cícero (“Pro Murena”), ficamos com a sensação de que não se verificou apenas a “compra” de votos, que terá havido também “chapelada” eleitoral. Sérvio Sulpício, um dos candidatos derrotados e acusador no julgamento, argumentou ser impossível que Murena houvesse recolhido tantos votos. É bem provável que, por ordem de Cícero, votos de Sulpício tenham sido contados a favor de Murena.

 

Na noite de 6 para 7 de Novembro, em Roma, teve lugar uma reunião dos chefes do movimento em casa do senador Marco Pórcio Leca.

Segundo Cícero, ali teriam decidido assassiná-lo no dia seguinte (dois dos conspiradores visitá-lo-iam logo pela manhã para o matar no leito). Que Catilina partiria de imediato para a Etrúria, para assumir o mando das tropas de Mânlio e marchar depois sobre Roma. E que então, na cidade, a senha convencionada, o movimento atearia incêndios, iniciaria o massacre dos optimates e apoderar-se-ia do poder. Todas estas “pechinchas” tê-las-á contado Fúlvia a Cícero mal acabou a reunião. De imediato o cônsul fez circundar a sua casa pela guarda e suspendeu as visitas.

 

A 8 de Novembro Cícero convoca os senadores a uma sessão extraordinária no templo de Júpiter, no Palatino, que é rodeado por uma guarda de jovens nobres. Aí pronuncia a sua primeira “Catilinária”: «Até quando, Catilina, abusarás tu da nossa paciência?» e acusa-o de ser responsável de conspiração, exigindo o seu afastamento de Roma e ameaçando-o abertamente: «Hás-de ser morto...» (“Primeira Catilinária, II, 5-6).

A esmagadora maioria dos senadores apoiou Cícero. Catilina tentou justificar-se, mas os clamores dos adversários impediram-no de falar. Na noite do dia seguinte abandonou Roma, para reunir-se a Mânlio na Etrúria.

Em toda esta “trama” é evidente o objectivo de Cícero. Era em Roma que Catilina constituía uma ameaça real. Provocando-o com as “denúncias”, obrigando-o a abandonar a cidade, o cônsul “decapitava” ali o movimento dos populares. Catilina, ao intimidar-se e ao “fazer a vontade” a Cícero cometeu um grave erro táctico.

 

Liberto do adversário, Cícero tratou de defender Murena (Crasso foi outro dos defensores), explicando aos optimates e equites acusadores que a sua condenação só “levaria água ao moinho” dos agora já realmente revoltados partidários de Catilina. E, apesar das provas gritantes, Murena foi absolvido.

 

Em Roma, à frente do movimento rebelde – de que faziam parte, entre outros, Caio Cornélio Cetego, Públio Gabínio e Lúcio Estatílio – ficou o pretor de 63, Públio Cornélio Lêntulo.

 

Encontrava-se então na cidade uma embaixada das tribos gaulesas dos alóbrogos, que viera tentar obter do senado a redução das suas dívidas. Lêntulo entra em contacto com os gauleses, prometendo-lhes o perdão das dívidas. Os alóbrogos resolvem pedir conselho ao seu patronus, Fábio Sanga, que informa Cícero.

O cônsul aproveita a oportunidade. Servindo-se dos alóbrogos como agentes provocadores, ordena-lhes que finjam anuir às solicitações de Lêntulo. Em vésperas de regresso à sua terra, os alóbrogos pedem aos chefes do movimento uma carta a garantir-lhes o prometido, dizendo que sem ela os seus não acreditariam no que lhes iam dizer. Lêntulo, Gabínio, Cetego e Estatílio entregam-lhes o documento. Mais, como os gauleses houvessem solicitado um encontro com Catilina, Lêntulo fê-los acompanhar por um dos seus, com uma carta para o chefe rebelde.

Na noite de dois para três de Dezembro, quando se preparavam para deixar Roma, os alóbrogos são detidos. Agora com provas na mão, na manhã de três de Dezembro, Cícero ordena a prisão dos conspiradores. Lêntulo, Cetego, Gabínio e Estatílio são encarcerados (Cepário, de Tarracina, que se havia posto em fuga, é capturado pouco depois).

O senado é imediatamente convocado. Cícero interrogou os detidos (alóbrogos incluídos) perante os senadores, tendo a maioria dos revoltosos confessado. Lêntulo é destituído do cargo de pretor, sendo confirmada a ordem de prisão a todos os detidos. Por decreto especial, Cícero é nomeado «pai da pátria» e premiado com uma coroa civil. Em seu nome prestam-se graças aos deuses pela «salvação do Estado».

 

A 5 de Dezembro o senado reuniu-se para julgar os condenados. Cícero sabia que estava a cometer um acto absolutamente ilegal, mas tinha “pressa”. Na cidade, artesãos, libertos e escravos agitavam-se, ameaçando libertar pela força os encarcerados. Perguntado sob a pena a aplicar aos acusados, Júnio Silano, eleito cônsul para 62 e, por isso, o primeiro a ser questionado, pronuncia-se pela “pena máxima” (extremum supplicium). Os demais senadores seguiram-no.

Quando chega a sua vez, César, eleito pretor para 62, discursando com muito tacto, põe em evidência a manifesta ilegalidade da actuação do senado. A pena de morte não podia ser aplicada a cidadãos romanos sem a decisão da assembleia popular (e este já era um argumento “mitigado”, “diplomático”, pois que o senado não detinha qualquer competência judicial, ou seja, não podia sequer julgar). César propunha, “em alternativa”, que os bens dos acusados fossem confiscados e que eles fossem encerrados, sob vigilância, em municípios itálicos.

O discurso de César faz os ânimos dos senadores começarem a vacilar (no final da sessão do senado, a juventude aristocrática, de guarda ao edifício, quis matar César por causa do seu discurso). Porém, Cícero e Marco Pórcio Catão (sobrinho-neto do “Censor”), com as suas intervenções posteriores, reafirmaram-nos na anterior decisão, tendo a maioria votado pela pena de morte.

Nesse mesmo dia, ao cair da tarde, Lêntulo, Cetego, Estatílio, Gabínio e Cepário são estrangulados no cárcere pelos verdugos.

O “pai da pátria” foi então saudado entusiasticamente pela multidão, pasmada por tudo o que lhe ouvira sob a “conjura”.

 

Na Etrúria, entretanto, Catilina e Mânlio haviam reunido cerca de 10.000 partidários. No sul, ainda mais radical, os revoltosos tentavam mobilizar os escravos

 

Depois de os haver declarado “inimigos da pátria”, o senado enviara para a Etrúria o cônsul Caio António ao mando de um exército.

O cônsul permaneceu inactivo e Catilina procurou organizar as suas forças, esperando que a rebelião alastrasse.

 

Os escravos acudiram em grande número ao seu acampamento, mas Catilina rejeitou o seu auxílio. Dizia (segundo Salústio, 56) que não se devia «confundir a causa dos cidadãos romanos com a dos escravos fugitivos» (Lêntulo, ao invés, seria a favor da sua participação).

À notícia do fracasso do movimento em Roma, parte considerável das tropas desertou. Com as forças que lhe restavam, Catilina tenta passar à Gália, mas é cercado perto de Pistório (Pistorium; actual Pistóia) pelo exército de António e por contingentes vindos da costa adriática (inícios de 62).

Sem outra saída, Catilina lança-se sobre o adversário. Ele e 3.000 dos seus morrem na encarniçada batalha.

Salústio (61), que em tudo o resto o denigre, diz que ninguém se rendeu nem procurou fugir: «Catilina foi encontrado longe dos seus, entre os cadáveres dos adversários. Respirava debilmente e todavia o seu rosto mantinha ainda aquela expressão de força indomável que sempre mostrava».

 

Crasso e César, se é que chegaram a ter parte efectiva no movimento, fizeram-no na sombra, agindo com extrema prudência, e ter-se-iam afastado mal se iniciou a sua radicalização. No entanto a repressão da revolta reforçou consideravelmente a posição dos optimates no poder e César e Crasso, de qualquer modo muito comprometidos com os populares, tiveram de desaparecer por algum tempo da cena política.

 

Depois de exercer a pretura em 62, César foi governador da Espanha ulterior em 61. Diz Plutarco que os seus credores não o queriam deixar partir de Roma e que Crasso teve de lhe pagar algumas das dívidas mais prementes, bem como constituir-se seu fiador pela “módica” soma de 830 talentos (“Caio César”, XI).

 

O PRIMEIRO TRIUNVIRATO.

 

Pompeu regressa então, em finais de 62, trazendo consigo 20.000 talentos para as arcas do Estado. À chegada, licencia o seu exército. É-lhe tributado um magnífico triunfo, mas o senado, agora seguro no poder, recusa-se a confirmar as medidas por ele tomadas no Oriente. Recusa-lhe também o pedido de terras para os seus veteranos.

 

No Verão de 60 César volta à Itália, já no período de apresentação das candidaturas para as eleições consulares. O senado havia-lhe concedido o triunfo pela sua actuação na Hispania.

César não podia entrar em Roma antes da celebração do triumphus, porém, para se candidatar a cônsul para 59, tinha de o fazer pessoalmente. O senado podia abrir uma excepção (como tantas vezes havia feito), dispensando-lhe a presença, mas recusou-se a permiti-lo. Assim, César teve de renunciar ao seu triunfo para se apresentar como candidato ao cargo consular.

 

Tratando de juntar todas as forças “democráticas” (ou melhor, anti-senado), estabelece contactos com Pompeu e consegue que este e Crasso façam as pazes. Nesse Verão de 60 os três formam a aliança política a que se chamou o “triunvirato”, e que Varrão “baptizou” com o apropriado nome de «monstro de três cabeças”.

Para reforçar os laços pessoais, César deu a Pompeu por esposa a sua filha Júlia (princípios de 59).

Por detrás de César e Pompeu estavam os democráticos e Crasso tinha o apoio da ordem equestre.

 

O primeiro objectivo da aliança era a eleição de César como cônsul Uma vez eleito, trataria de fazer aprovar as medidas desejadas por Pompeu e por Crasso.

Caio Júlio triunfa nas eleições. Com muita dificuldade, o partido senatorial consegue também  fazer eleger o seu candidato, Marco Calpúrnio Bíbulo.

 

O CONSULADO DE CÉSAR.

 

Já investido no cargo, César apresenta ao senado três projectos-lei.

 

Um projecto de lei agrária (ou talvez dois), que favorecia em primeiro lugar os veteranos de Pompeu. As terras públicas a dividir seriam as da Campânia. No caso de serem insuficientes, seriam compradas outras terras em Itália, com as receitas das novas províncias orientais.

Na repartição das terras seria ainda dada preferência aos cidadãos mais pobres e àqueles que tivessem três ou mais filhos (esta seria o hipotético segundo projecto).

Para executar o programa da lei seria nomeada uma comissão de vinte membros.

 

A segunda rogatio confirmava todas as medidas que Pompeu tomara no Oriente. A terceira diminuía em um terço as somas pagas ao estado pelos publicanos “arrecadadores”.

 

A oposição no senado chegou até à obstrução. Como os oradores dispunham de um tempo ilimitado de intervenção, Catão falou durante longas horas, impedindo desse modo a votação.

César apresenta então as rogationes nos próprios comícios.

Bíbulo tentou dissolver a assembleia, pretextando o desfavor dos deuses. Alguns tribunos da plebe interpuseram o veto. Catão acusou César de ilegalidade, mas nada o conseguiu demover.

No dia da votação os veteranos de Pompeu compareceram em força, com punhais sob as roupas. Bíbulo foi levado da assembleia pelos seus amigos, que temiam pela sua vida, e Catão é expulso pela multidão. Os projectos são aprovados, com Pompeu e Crasso a serem eleitos para a comissão agrária. César renunciou a fazer parte dela.

Depois destes sucessos, Bíbulo, em sinal de protesto, retira-se para o seu domicílio, ali se encerrando até ao termo do ano consular. Mais tarde, mofando, quando queriam indicar o ano do consulado de César e de Bíbulo, diziam: «durante o consulado de Júlio e de César».

 

Entre outras medidas tomadas então por César é de destacar a lex Julia repetundarum, regulando os pagamentos que haviam de ser feitos aos governadores provinciais (pelo que recebessem fora desse quadro legal, incorriam em crime de concussão).

Ainda a iniciativa de César (por ordem sua), começam a publicar-se em Roma os decretos do senado e as leis da assembleia popular (acta senatus et populi Romani). Foi a primeira gazeta oficial da história.

 

Segundo a lei de Caio Graco, o senado tinha de escolher as províncias que seriam atribuídas aos cônsules ainda antes das eleições consulares. Porém, prevendo que um deles seria César, os senadores destinaram aos cônsules de 59 duas províncias secundárias. Dado que isso ia contra os planos de César, um dos seus partidários, o tribuno da plebe Públio Vatínio propôs na assembleia popular (lex Vatinia) que fossem atribuídas a César a Gália Cisalpina e a Ilíria, por um período de cinco anos e com direito a manter três legiões em cada uma dessas províncias. A lex Vatinia revogou automaticamente a anterior decisão senatorial.

O senado, mudando de táctica, decide também atribuir uma província a César. Por proposta de Pompeu, a Gália Narbonense, com uma legião e sem indicação de tempo. A guerra era ali iminente e inevitável e César seria obrigado a empenhar-se por muito tempo nela. Afastá-lo-iam assim de Roma...

 

CLÓDIO.

 

Terminado o seu consulado, César manter-se-á por algum tempo nas proximidades de Roma. Antes de partir para as províncias, havia que resolver alguns “assuntos pendentes”.

 

Públio Clódio era um aventureiro sem escrúpulos e um corrupto. A crónica mundana romana registou-lhe os escândalos amorosos, em particular o seu “caso” com a segunda esposa de César, Pompeia, de quem este se divorciou em 62 (Caio Júlio casara-se com ela em 67, após a morte de Cornélia; em 59 César casa-se, pela terceira e ultima vez, com Calpúrnia). Vendo nele o homem indicado para servir os seus planos, César perdoou-lhe.

Em 59 Clódio passa-se dos “patrícios” para os “plebeus”, iniciando uma carreira “democrática”. Com a ajuda de César, é eleito pelo partido democrático tribuno da plebe para 58. O seu ódio pessoal a Cícero facilitou-lhe a aceitação entre os populares, que queriam vingar-se do que acontecera com Catilina.

Clódio tornou-se o principal agente de César em Roma.

Promoveu a aprovação de algumas leis democráticas: a que instituiu a distribuição gratuita de pão aos pobres; a que restabeleceu os “colégios de bairro” (collegia compitalicia), que o senado interditara em 64; também uma lei a permitir a realização das assembleias nos dias festivos.

Contra Cícero, Clódio apresentou uma proposta de lei especial prescrevendo, para todo o magistrado que houvesse condenado à morte, sem julgamento, um cidadão romano, a pena de “privação da água e do fogo” (acquae et ignis interdictio), ou seja, o exílio.

Cícero ainda tentou impedir a apresentação da rogatio. Como não o conseguiu, partiu para a Macedónia no Verão de 58, antes que a lei houvesse sido aprovada. Mas o exílio voluntário do “pai da pátria” não lhe evitou nem o confisco dos bens nem a destruição das suas casas urbanas e villae.

Quanto a Catão, o principal adversário de César, é enviado a Chipre, a pretexto de uma “delicada” missão diplomática.

 

César deixa então a Itália e viaja para a Provincia, com o título de procônsul.

 

Já após 58, Clódio, que vinha desenvolvendo uma política extremamente demagógica, entra em conflito com Pompeu. Para o neutralizar, Pompeius alia-se a Tito Ânio Milão, tribuno da plebe de 57. Dele diz Apiano (II, 16) que era ainda «mais descarado que Clódio».

Aproveitando a ruptura entre os “democráticos”, os amigos de Cícero, com a ajuda de Pompeu e Milão, obtêm-lhe a amnistia. Cícero regressa em 57, tendo sido recebido solenemente e reintegrado nos seus bens.

Este episódio balizou o início da aliança entre Pompeu e o senado. Agradecido, Cícero ajudará Pompeu a obter poderes extraordinários por cinco anos para o abastecimento de víveres a Roma (cura annonae). É-lhe ainda concedido o poder proconsular em Itália.

 

CÉSAR NA GÁLIA.

 

À época, havia três “Gálias”:

A Cisalpina (Togata Gallia, ou seja, completamente romanizada).

A Gália Narbonense, também chamada simplesmente Provincia (conquistada em 122)

A Gália “selvagem” (Gallia comata vel bracata; “Gália cabeluda ou em calções”), que os mercadores, publicanos e aventureiros militares romanos então cobiçavam.

 

A Gália “selvagem, por sua vez, dividia-se em outras três regiões:

O sudoeste, entre os Pirinéus e o rio Garona, habitada pelos aquitânios (Aquitani), tribos célticas com grande mescla de elementos ibéricos.

O “país” central ou Gália propriamente dita, limitada a norte pelos rios Sena e Marne. Ocupavam-no os gauleses (celtas).

A região setentrional, estendendo-se até ao Reno, era povoada pelos belgas, tribos céltico-germânicas, menos avançadas civilizacionalmente.

 

A Gália “selvagem” era composta por um mosaico de tribos independentes, rivais umas das outras. Algumas encontravam-se ainda no estádio patriarcal primitivo (pequena propriedade; igualdade da riqueza material), outras já haviam desenvolvido uma considerável diferenciação social.

Os nobres formavam a camada dirigente destas tribos. Nas tribos mais desenvolvidas, a nobreza possuía bastantes escravos (ambacti) e dependentes.

Na Gália dispunham de grande autoridade os sacerdotes druidas, intérpretes do direito e guardiães da secular sabedoria celta, onde à “arte” de predizer e de adivinhar se juntava uma panóplia de conhecimentos empíricos.

 

A Gália era um país fértil e densamente povoado. Na base da vida económica, a agricultura, a criação de gado, a exploração silvícola e também o artesanato. A divisão (especialização) do trabalho atingira já um razoável nível de desenvolvimento, levando ao aparecimento de numerosos centros fortificados: Gergovia (perto da actual Clermont-Ferrand), Bribacte (perto de Autun), Alesia (Alise-Sainte-Reine), Lutetia (Lutécia, numa ilha do Sena, na região dos Parisii), Avaricum (Bourges), Cenabum (Orleães), entre outros. Em caso de perigo, era nestes centros que se refugiavam as populações das cercanias e se concentravam as milícias tribais. Também ali viviam os artesãos locais e se faziam as feiras, frequentadas até por mercadores gregos e romanos.

A Gália era ainda famosa pelas suas numerosas minas de ouro.

 

Na Gália central, que confinava com a Provincia, num largo conflito, três tribos haviam lutado pela supremacia. Os éduos (Haedui; habitavam entre o Loire e o Saône, nos actuais departamentos do Saône-et-Loire, Nièvre e, parcialmente, nos da Côte d’Or e do Allier), os séquanos (Sequani; entre o Saône, o Ródano, o Jura, o Reno e os Vosges; departamentos do Jura, Doubs, Alto-Saône e parte do Alto-Reno) e os arvernos. Os éduos eram considerados aliados de Roma. Os séquanos e os arvernos já se inclinavam para alianças com os germanos que viviam além Reno. A pedido dos séquanos, um chefe da tribo germana dos suevos, Ariovisto, cruza o rio com um grande contingente e, depois de longa luta e de receber reforços dalém Reno, vence os éduos (por volta de 60). Em compensação pela ajuda, os séquanos foram obrigados a ceder a Ariovisto uma parte dos seus territórios (na actual Alsácia).

 

Este era o quadro da situação naquela região da Gália quando César chegou à Narbonense. Entretanto os helvécios (Helvetii), que habitavam a região ocidental da actual Suíça, decidem partir à conquista de novas terras, no país dos Santones, situado nas bocas do Garona. Para lá chegarem, o caminho mais fácil cruzava o Ródano e, numa parte do trajecto, território da Provincia. Os Helvetii (e outras tribos que se lhes haviam juntado) pedem, pois, passagem aos romanos, mas César recusa-a e coloca as suas tropas na fronteira norte, levantando ali fortificações (região do Lago de Genebra).

Os helvécios escolhem então um outro caminho, cruzando os territórios dos séquanos e éduos.

 

César vai aproveitar para intervir nos assuntos da Gália. Em Junho de 58 passa a fronteira da província e, perseguindo-os, cai sobre os helvécios perto de Bribacte. Havendo sido duramente derrotados, os Helvetii sobreviventes (cerca de 110.000, segundo César) são obrigados a regressar às suas terras e a concluir um tratado de aliança com Roma.

 

Ariovistus será o seu próximo alvo. Procurando apresentar a campanha contra o suevo como uma guerra nacional de toda a Gália, Caio Júlio faz convocar para o Verão de 58 uma assembleia de representantes de tribos gaulesas. É então pedida ajuda a César contra os germanos. O romano exige a Ariovisto que devolva os reféns aos éduos (deixando assim de receber o respectivo tributo) e que mais nenhum contingente germano atravesse o Reno. Como o suevo se houvesse recusado, César declara-lhe a guerra.

No Outono de 58, na Alsácia, não longe do Reno, Ariovisto é derrotado e perseguido até ao rio. Alguns dos germanos, com os seus chefes, conseguem escapar para a margem direita.

 

Pela primeira vez os romanos haviam atingido o Reno. Mais tarde, tratando de reforçar a linha de defesa do rio, César irá permitir a permanência, na margem esquerda (a gaulesa), a uma série de pequenas tribos germanas.

 

Em 57, com oito legiões, César ataca os belgas. Depois do primeiro combate sobre o rio Áxona (Axona; o actual Aisne), uns após outros, são submetidos os suessiões (Suessiones; região da actual cidade de Soissons), os belóvacos (Bellovaci; a sul dos ambianos) os ambianos (Ambiani; região de Amiens) e os nérvios (Nervii; já na actual Bélgica, região entre o Mosa e o Escalda).

 

Na batalha decisiva, sobre o rio Sambre (Sabis), travada contra os nérvios, os romanos só a muito custo venceram (“A guerra das Gálias”, II, 19 a 27).

«César, precedido pela sua cavalaria, seguia a pouca distância com todas as suas forças. Ao aproximar-se do inimigo, segundo o seu costume, pusera à cabeça as seis legiões e colocara as bagagens de todo o exército atrás delas. Depois duas legiões, as que haviam sido alistadas mais recentemente, fechavam a marcha e guardavam as bagagens. Os nossos cavaleiros atravessaram o rio com os fundibulários e os archeiros e travaram combate com a cavalaria do inimigo. Este retirava para o interior dos bosques, para junto dos seus, depois, voltando a sair, carregava contra os nossos; mas os nossos não ousavam persegui-los quando eles recuavam para lá do terreno descoberto. Entretanto chegaram as seis legiões, traçaram o recinto do campo e puseram-se a fortificá-lo. Assim que os inimigos que se haviam dissimulado avistaram as primeiras bagagens do nosso exército, lançaram-se de repente, com todas as suas forças, e caíram sobre os nossos cavaleiros. Depois de facilmente os terem derrotado e dispersado, correram para o rio a uma tão espantosa velocidade que quase pareciam estar ao mesmo tempo diante dos bosques, no rio e já em luta com os nossos. Com a mesma velocidade treparam a colina oposta, marchando para o nosso campo e contra aqueles que se preparavam para o fortificar.

Era preciso desfraldar o estandarte, que dava sinal para correr às armas, fazer soar a trombeta, chamar os soldados do trabalho, mandar procurar aqueles que estavam um pouco afastados por causa do aterro, dispor o exército em batalha. O pouco tempo e a aproximação do inimigo tornaram impossível grande parte destas medidas. Nestas dificuldades, duas coisas ajudavam César: a habilidade e o treino dos soldados que, exercitados pelos combates precedentes, não eram menos capazes de a si próprios traçarem uma conduta que de aprendê-la dos outros; e a proibição estabelecida por César aos seus lugar-tenentes de se afastarem do trabalho e das suas legiões antes dos trabalhos de campo estarem terminados. Cada um deles, em razão de proximidade e da velocidade do inimigo, não esperava agora as ordens de César, mas fazia por si o que lhe parecia bem.

César...estava na X legião...Com o inimigo já ao alcance de dardo, deu o sinal de combate. Depois, indo à outra ala (a direita), encontrou o combate já aceso. O ataque fora tão rápido que não houve tempo nem mesmo para pôr os capacetes e tirar as capas dos escudos. Cada um, ao voltar dos trabalhos, colocou-se ao acaso sob as primeiras insígnias que avistou.

Como o exército se dispusesse em batalha segundo a natureza do terreno e o declive da colina, e consoante a necessidade urgente mais que segundo a ordem e a regra da arte militar, as legiões, isoladas, defendiam-se contra o inimigo cada uma do seu lado, separadas umas das outras por aquelas sebes muito espessas...que impediam de ver (os nérvios têm o hábito antigo, para impedirem as incursões dos seus vizinhos, de cortar e curvar jovens árvores, cujos numerosos ramos crescidos em largura, cruzados com espinheiros e silvados nos intervalos, formam vedações semelhantes a muros); não se podia empregar com precisão as reservas, nem prover ao que era necessário em cada ponto nem conservar a unidade de comando. Assim, numa tal desigualdade de circunstâncias, a fortuna das armas era igualmente muito diversa.

Os soldados da IX e X legiões, que se encontravam colocados na ala esquerda do exército, depois de terem lançado os seus dardos, caíram sobre os Atrebates (atrébates; povo belga do antigo Artois; actuais departamentos do Somme e do Pas-de-Calais) estafados pela corrida e cheios de ferimentos, e bem depressa os repeliram da elevação até ao rio. Estes tentaram cruzá-lo; os nossos, perseguindo-os à espada, mataram-nos em grande número. Eles próprios não hesitaram em atravessar o rio e, avançando num terreno desfavorável, onde o inimigo se voltou para resistir, deram-lhe a derrota num segundo combate. De modo semelhante, num outro ponto da frente (o centro), duas legiões isoladas, a XI e a VIII, depois de terem vencido os Veromandui (veromânduos; belgas que ocupavam o antigo Vermandois; actuais departamentos do Somme e do Aisne) que se lhes opuseram, haviam-nos perseguido desde a elevação até às margens do curso de água.

Mas agora, encontrando-se o campo quase inteiramente descoberto no centro e na esquerda, como a XII legião estava formada na ala direita, com a VII não longe dela, todos os nérvios, em colunas compactas, conduzidos por Boduognato, o seu chefe supremo, caíram sobre elas; e enquanto uns as envolviam pelo flanco descoberto, outros ganhavam o cimo do campo.

Ao mesmo tempo, os nossos cavaleiros e os nossos soldados de infantaria ligeira que haviam sido repelidos, tal como já disse, no primeiro embate com o inimigo, encontraram-nos (aos nérvios) pela frente ao retirar para o nosso campo e fugiram de novo numa outra direcção. E os servos, que da porta decumana (porta principal do acampamento), no cimo da colina, viram os nossos atravessar o rio como vencedores (as quatro legiões do centro e da ala esquerda), saíram para fazer saque; quando, ao voltarem, viram o inimigo no nosso campo, puseram-se a fugir de cabeça baixa. Simultaneamente elevavam-se o clamor e o barulho dos que chegavam com as bagagens e que, em pânico, fugiam em todas as direcções. Enlouquecidos por este espectáculo, os cavaleiros tréveros, particularmente afamados pela sua bravura entre os gauleses, e que o seu estado enviara a César como auxiliares, vendo o nosso campo cheio de inimigos, as nossas legiões acossadas e quase cercadas, os servos, os cavaleiros, os fundibulários e os númidas dispersos e em fuga, julgaram a nossa situação desesperada e regressaram para os seus.

César...na ala direita, viu os seus soldados acossados, as insígnias juntas no mesmo lugar, os soldados da XII amontoados e embaraçando-se uns aos outros no combate; todos os centuriões da quarta coorte caídos; o porta-estandarte morto, o estandarte perdido, quase todos os centuriões das outras coortes feridos ou mortos. Alguns homens das últimas fileiras, cessando de combater, retiravam e punham-se ao abrigo das frechas; o inimigo não parava de subir desde o sopé da colina para o nosso centro (da XII legião) e de nos apertar nos dois flancos. A situação era crítica e, como não tinha nenhuma reserva de que pudesse esperar socorro, pegou no escudo de um soldado da retaguarda e, dirigindo-se à primeira linha, deu ordem para fazer avançar as insígnias e alargar as fileiras, para que o emprego da espada pudesse ser mais fácil...

Notando que a VII legião, que estava colocada próxima, também era acossada de perto pelo inimigo, avisou os tribunos militares para que aproximassem pouco a pouco as duas legiões e as colocassem lado a lado frente ao inimigo. Desta maneira os soldados prestavam-se um mútuo socorro e, não temendo já ser apanhados pela retaguarda e cercados, começaram a combater com mais coragem. Entretanto os soldados das duas legiões que, na retaguarda, guardavam as bagagens, pondo-se em passo de corrida ao anúncio dos combates, mostravam-se agora ao inimigo no alto da colina. Por seu lado Tito Labieno, que se apoderara do campo dos inimigos e vira da elevação o que se passava no nosso, enviou a X legião em nosso socorro.

A sua chegada alterou de tal maneira a face da situação que aqueles dos nossos que esgotados pelos seus ferimentos jaziam por terra, apoiando-se nos seus escudos, recomeçaram a bater-se. Os cavaleiros, para anular pela sua bravura a vergonha da fuga, em toda a parte tomavam a dianteira aos legionários. Mas os inimigos, mesmo reduzidos ao último extremo, mostraram tanta coragem que quando os primeiros dentre eles caíam, os que os seguiam subiam para os seus corpos e continuavam o combate; e, quando tombavam por sua vez e os cadáveres se amontoavam, os sobreviventes, como do alto de um cabeço, lançavam dardos contra os nossos...»

 

A “nação” dos aduátucos (Aduatuci; a norte dos nérvios), a derradeira a resistir, foi em grande parte aniquilada, com 53.000 dos seus a serem vendidos como escravos.

As tropas romanas vão estabelecer quartéis de Inverno entre os Carnutes, os Andes (no actual Anjou), os Turones e outros povos a oeste do Sena, em plena Gália central, que é assim incorporada no domínio romano.

César invernou na Cisalpina, como era seu costume (para estar mais próximo de Roma). No seguimento do relatório por ele apresentado, o senado decretou que fossem prestados quinze dias de acções de graças solenes (Pompeu só tivera direito a doze dias pela sua vitória sobre Mitridates).

 

Pouco depois, ainda nesse Inverno de 57/56, as Aremoricae civitates (“cidades-Estado da Armórica”; nas costas da Bretanha e da Normandia) recusam submeter-se aos romanos. Desde o Reno até ao Loire, as outras tribos do litoral apoiam-nas.

Os legados de César vão atacá-los e, simultaneamente, sujeitar a maior parte das outras regiões ainda livres da Gália “selvagem”.

Tito Labieno, seu lugar-tenente, é enviado com a cavalaria ao país dos tréveros (Treveri; nas duas margens do Mosela inferior, na actual Renânia), para vigiar os belgas e os germanos.

O jovem Públio Crasso (o filho mais novo de Crasso), com doze coortes e numerosa cavalaria, vai levar a guerra à Aquitânia, que submeterá em grande parte.

Na actual Normandia, Quinto Titúrio Sabino, com três legiões, reduz os lexóvios (Lexovii; região da cidade de Lisieux) e os unelos (Unelli; região da cidade de Cherbourg). Na Bretanha, os curiosolitas (Curiosolites; região da Baía de Saint-Brieuc).

César (já no Verão), com o grosso da infantaria, invadirá o “país” dos vénetos (Venécia gaulesa, na região de Vannes). A frota de pequenas embarcações que mandara construir no Liger (o rio Loire), reforçada por navios dos Pictones (região de Poitiers ao Marais Poitevin), Santones e outras “nações” celtas já dominadas, também para ali se dirige, sob o comando do jovem Décimo Júnio Bruto Albino.

 

César (idem; III, 12-13) explica porque é que a frota era necessária (e também as características dos navios armóricos): «Quase todas as cidades desta costa estavam situadas na extremidade de línguas de terra e sobre promontórios, e não ofereciam acesso aos infantes, quando a maré estava cheia (o que se dá regularmente duas vezes em cada vinte e quatro horas), nem aos navios, porque na maré baixa os navios encalhariam nos baixios. Eis o duplo entrave ao cerco destas praças. Se por acaso, depois de trabalhos consideráveis, se conseguisse conter o mar com diques ou aterros e levar as obras de assédio até junto das muralhas, os sitiados, quando desesperassem da sua fortuna, reuniriam numerosos navios, de que tinham grande quantidade, transportariam todos os seus bens e retirar-se-iam para as praças vizinhas, onde a natureza lhes oferecia as mesmas comodidades para se defenderem. Esta manobra foi-lhes tanto mais fácil, durante uma grande parte do Verão, porquanto os nossos barcos estiveram retidos pelo mau tempo e porque era muito difícil navegar num mar vasto e aberto, sujeito a grandes marés, sem portos ou quase sem portos.

Nos navios dos inimigos...a quilha era muito mais chata que a dos nossos, de modo que tinham menos a recear dos baixios e da vazante; as suas proas eram mais levantadas e as popas apropriadas igualmente à força das vagas e das tempestades; os navios eram inteiramente de carvalho...as travessas tinham um pé de grossura e estavam presas por cavilhas de ferro da espessura de um polegar, as âncoras eram retidas por correntes de ferro...em lugar de velas, couros delgados e maleáveis...porque julgassem pouco fácil de dirigir com as nossas velas navios tão pesados através das tempestades do Oceano e dos seus ventos impetuosos. Quando a nossa esquadra se encontrava com tais navios, a sua única vantagem era ultrapassá-los em velocidade e em agilidade; tudo o resto era a favor dos navios inimigos, melhor adaptados...à natureza deste mar e à violência das tempestades; efectivamente os nossos, com os seus esporões, não tinham poder algum sobre eles, de tal modo eram sólidos; a altura da sua construção fazia com que as frechas não os atingissem facilmente e, ao mesmo tempo, que fosse pouco cómodo arpoá-los».

 

Quando Bruto aparece com a frota os armóricos resolvem dar-lhe batalha. César (ibidem; III, 14 a 16): «Assim que foi avistada pelo inimigo, cerca de 220 dos seus navios...saíram do seu porto (na ria de Auray; o combate ter-se-á travado, provavelmente, na Baía de Saint-Gildas) e vieram colocar-se na frente dos nossos...uma invenção preparada pelos nossos foi de um grande auxílio; eram gadanhas extremamente cortantes, encabadas em compridas varas...Com estas gadanhas agarravam e puxavam para si os cordames que prendiam as vergas aos mastros; cortavam-nos a força de remos; uma vez cortadas, as vergas caíam forçosamente e os barcos gauleses, perdendo as suas velas e aparelhos...ficavam de imediato reduzidos à impotência. O resto do combate não era mais do que questão de coragem e nisso os nossos tinham facilmente vantagem, sobretudo numa batalha travada diante dos olhos de César e de todo o exército...o exército, com efeito, ocupava todas as colinas e todas as elevações de onde a vista se estendia sob o mar muito próximo.

Logo que um navio ficava com as vergas abatidas...dois ou três dos nossos rodeavam-no e os nossos soldados subiam à viva força à abordagem...os Bárbaros, que tinham perdido uma grande parte dos seus navios...tentaram a salvação na fuga...quando, de súbito, sobreveio uma calmaria que lhes tornou toda a manobra impossível...os nossos atacaram e tomaram cada navio, um por um, e foi só um bem pequeno número deles que pôde, favorecidos pela noite, alcançar terra. A batalha tinha durado desde a quarta hora do dia até perto do pôr-do-sol.

Esta batalha pôs termo à guerra dos vénetos e de todos os Estados marítimos desta costa: porque todos os homens jovens e também todos os homens de idade madura distintos pela sua categoria ou pela sua sabedoria estavam ali reunidos, e tinham concentrado, além disso, naquele único ponto, tudo o que tinham de navios, e esta perda não permitia aos outros qualquer outro meio de retirar ou de defender as suas praças. Renderam-se assim, de corpos e bens, a César. César decidiu dar um exemplo severo, que ensinasse aos Bárbaros de futuro...Ordenou a morte de todo o senado e vendeu os outros em hasta pública».

 

Deste modo, nos finais do Verão de 56, quase toda a Gália “selvagem “ se submetera (à excepção de algumas regiões da Aquitania e dos Belgae). 

César ainda tentará reduzir o que restava das tribos livres a norte (ibidem; III, 28-29): «...se bem que o Verão estivesse já perto do fim, César vendo...que em toda a Gália pacificada apenas os mórinos (Morini; actuais departamentos franceses do Pas-de-Calais e do Nord e província belga da Flandres) e os menápios (Menapii; bocas do Escalda e do Reno, norte da Bélgica e Holanda) continuavam em armas e nunca lhe tinham enviado deputados a pedir a paz, pensou que esta era uma guerra que podia ser terminada rapidamente e para lá conduziu o seu exército. Estes povos seguiram uma táctica guerreira inteiramente diferente...vendo que as maiores nações que tinham lutado contra César haviam sido repelidas e vencidas, e possuindo um país onde se sucedem florestas e pântanos, para lá transportaram corpos e bens. César, chegado à orla destas florestas, tinha começado a entrincheirar-se, sem que um só inimigo houvesse aparecido, quando, de súbito, no momento em que os nossos estavam dispersos no trabalho, os bárbaros saíram de todos os cantos da floresta e caíram sobre eles. Os nossos soldados, logo empunhando as armas, repeliram-nos para a floresta e mataram-nos em grande número, perdendo eles próprios alguns homens, por terem levado demasiado longe, em lugares difíceis, a perseguição ao inimigo.

Nos dias seguintes...iniciou o abate da floresta; e para impedir um ataque de flanco aos nossos soldados...mandava amontoar toda a madeira cortada na frente do inimigo e nos dois flancos, para com ela fazer uma fortificação...e já os nossos soldados estavam senhores dos rebanhos e das últimas bagagens do inimigo, que se internava na espessura das florestas, quando as constantes tempestades forçaram a interromper o trabalho e, não parando a chuva, já não foi possível manter os soldados nas tendas. Assim, depois de ter devastado todos os campos, queimado as aldeias e as construções, César trouxe o seu exército e estabeleceu-o em quartéis de Inverno entre os aulercos (Aulerci; actual Normandia) e os lexóvios, bem como entre os outros povos que acabavam de nos fazer a guerra (César, o agressor, diz que foram os agredidos a mover-lhe guerra!)».

 

A CONFERÊNCIA DE LUCA. A MORTE DE CRASSO.

 

Na Primavera de 56 (Abril; Kovaliov diz que se realizou no Verão, em razão do atraso à época do calendário romano), após a vitória de César sobre os belgas (e antes da sua ofensiva contra os vénetos), os triúnviros reuniram-se em Luca, na Etrúria setentrional (nas suas comitivas participavam mais de 200 senadores e 120 lictores acompanharam os magistrados ali presentes).

É então decidido prorrogar a César os poderes do proconsulado por mais cinco anos (a partir de 54, ano em que cessavam os poderes que lhe haviam sido conferidos pela lex Vatinia), permitindo-lhe ainda elevar para dez as legiões sob o seu mando. No termo destes novos cinco anos como procônsul, César seria eleito cônsul para 48. Pompeu e Crasso seriam eleitos cônsules de 55 e, no termo dos seus cargos, deteriam durante cinco anos as províncias das Espanhas (Pompeu) e da Síria (Crasso).

A assembleia popular, apesar da oposição do partido adverso, aprovou as decisões tomadas em Luca. Pompeu e Crasso são eleitos cônsules para 55.

No ano seguinte, Pompeu não partirá para as Espanhas, permanecendo em Roma e governando as províncias espanholas por intermédio de lugar-tenentes.

Ao invés, Crasso partiu para a Síria, onde inicia uma guerra de agressão contra os partos (Parthi). No primeiro ano a guerra decorreu com êxito para os romanos. Crasso cruzou o Eufrates e conquistou algumas praças-fortes na Mesopotâmia. Porém, no ano de 53, deixar-se atrair pela cavalaria parta e penetra profundamente nas áridas planuras da Mesopotâmia do norte. Não longe da cidade de Carras (Carrhae; na Assíria), nesse Verão, depara com o grosso do exército parto.

 

A infantaria romana não conseguiu fazer frente à cavalaria parta, protegida por couraças (homens e cavalos), que antes do choque os ia flagelando, de longe, com uma nuvem de flechas. A vanguarda, sob o comando do filho mais novo de Crasso, Públio Licínio, é completamente aniquilada. Logo os partos atacarão o grosso do exército romano, infligindo-lhe grossas perdas e obrigando-o a refugiar-se em Carras.

Quase sem víveres, os romanos retiram para norte, em direcção à Arménia, porém são alcançados pelos partos. Face à desmoralização dos soldados, Crasso tenta entabular negociações com o inimigo, mas é morto, tal como todo o seu estado-maior.

Quase todo o seu exército, que contava no início da ofensiva com 40.000 homens, foi destruído ou aprisionado. Milhares de soldados são reduzidos à escravatura e as águias romanas (a águia de prata era, desde os tempos de Mário, a insígnia das legiões) caem em poder dos partos. Apenas um esquadrão de ginetes ao mando do questor Caio Cássio Longino e alguns grupos isolados conseguiram voltar a cruzar o Eufrates.

À derrota dos romanos, recresce a revolta do povo judeu (Crasso, antes de iniciar a guerra contra os partos, contribuíra para o seu exacerbamento ao saquear o tesouro do templo de Jerusalém). Os partos retomam as fortalezas perdidas na Mesopotâmia e, no ano de 51, passam o Eufrates. Mas Cássio Longino sufocará a revolta hebraica e assegurará a defesa da Síria; com os partos a fracassarem na sua tentativa de tomar Antioquia e a serem derrotados já no caminho de regresso ao seu país. Depois disso, em consequência de lutas intestinas entre a classe dirigente, os partos cessarão por uma década os ataques à Síria.

 

AS EXPEDIÇÕES DE CÉSAR À GERMÂNIA E À BRITANNIA. A REVOLTA DOS GAULESES. A SUBMISSÃO DEFINITIVA DA GÁLIA.

 

No Inverno de 56/55, expulsas dos seus territórios pelos suevos, as tribos germanas dos tenteros (Tencteri) e dos usípetes (Usipii) cruzam o Reno (no país dos menápios), em demanda de novas terras.

Os germanos solicitam terras na Gália para se estabelecerem e, no decorrer das negociações, César ataca-os perfidamente, massacrando-os. Os restos dos tenteros e usípetes que conseguiram cruzar o Reno refugiam-se junto dos sicambros (Sicambri ou Sigambri; pertenciam à confederação dos suevos, habitando a norte dos úbios, na região do Ruhr e do Lippe).

César, perseguindo-os, cruza o rio, construindo para isso uma ponte (ibidem; IV, 17).

 

«Não obstante a extrema dificuldade de construir uma ponte, por causa da largura, da rapidez e da profundidade do rio...unia ao mesmo tempo, a dois pés uma da outra, duas traves de um pé e meio de grossura, um pouco afiadas na base, e de uma altura proporcional à das águas do rio; descia-as no rio com máquinas e enterrava-as com bate-estacas, não numa direcção vertical, mas numa linha oblíqua, inclinada segundo o movimento da água...e a 40 pés de distância, a jusante, colocava duas outras reunidas da mesma maneira, mas voltadas contra a força da corrente; sobre estes dois pares, colocava traves de dois pés, que se encravavam entre os postes emparelhados, e apunham-se de um lado e do outro duas cavilhas, que impediam os postes de se aproximarem em cima; estes postes, assim afastados e detidos, cada par em sentido contrário, davam muita solidez à obra e isso em virtude da própria natureza das coisas, pois que quanto maior era a violência da corrente mais o sistema se ligava estreitamente. Colocavam-se sobre as travessas faxinas longitudinais e, por cima, fasquios e caniçados; além disso, enterravam-se, na direcção da parte inferior do rio, estacas oblíquas que, fazendo contraforte e apoiando o conjunto da obra, quebravam a força da corrente; outras ainda eram colocadas a uma pequena distância antes da ponte, a fim de aguentar o choque dos troncos de árvores e dos barcos que os bárbaros pudessem lançar com vista à sua destruição.

Toda a obra ficou acabada em dez dias a contar daquele em que os materiais haviam sido trazidos (a ponte terá sido construída, provavelmente, entre Coblenza e Colónia)».

 

Os sicambros retiram para o interior do país, coberto de florestas. Os romanos, após dezoito dias de estadia na margem direita do Reno, em que devastam as povoações abandonadas e as searas dos sicambros, voltam à margem gaulesa, destruindo após a travessia a recém construída ponte.

 

Ainda nesse ano de 55, nos finais de Agosto, do “país” dos mórinos, César parte com duas legiões para a Britannia (Grã-Bretanha). Mas a resistência dos Britanni e o mau tempo, que destruiu uma parte da frota, obrigam-no a desistir da expedição e a voltar à Gália.

Logo Tito Labieno, com as duas legiões regressadas da Grã-Bretanha, atacará os mórinos (ibidem; IV, 38): «como os pântanos estavam secos, eles viram-se privados do seu refúgio, que os protegera no ano anterior, e caíram quase todos nas mãos de Labieno. Em contrapartida...Quinto Titúrio e Lúcio Cota, que tinham conduzido as legiões ao território dos menápios, depois de terem devastado os seus campos, cortado o trigo e queimado as habitações, retiraram, porque os menápios se haviam escondido na espessura das florestas».

 

No Verão de 54, com 5 legiões e 2.000 cavaleiros, numa frota de cerca de 800 embarcações, César parte para a sua segunda expedição à Britannia. Os Britanni, comandados por Cassivelauno fustigam os romanos com uma guerra de guerrilhas e cavam o vazio à sua frente, com a população e o gado a embrenharem-se nas florestas.

Porém (ibidem; V, 12, 21): «Vendo os Trinobantes (habitavam o que hoje são os condados de Suffolk e Essex) defendidos e ao abrigo de toda a injúria por parte dos soldados, os Cenimagni (cenimagnos; actuais condados de Norfolk e Cambridge), os Segontiaci (segoncíacos; Hampshire e Berkshire), os Ancalites (ancálites; norte do Berkshire e Middlesex ocidental), os Bibroci (bíbrocos; Surrey e Sussex) e os Cassi (cassos) enviam embaixadas e submetem-se a César. Por eles soube que a praça-forte de Cassivellaunus não ficava longe, que é defendida por pântanos e bosques e que um grande número de homens e de animais ali se encontra reunido. Os Britanni chamam praça-forte a uma floresta pouco praticável, defendida por um entrincheiramento e um fosso, que lhes serve de refúgio habitual contra as incursões do inimigo (o país de Cassivelauno está separado dos Estados marítimos por um rio que se chama o Tamesis, a cerca de 80.000 passos do mar). Para lá conduz as suas legiões (cruzou o Tamisa próximo de Londinium), encontrando uma posição notavelmente defendida pela natureza e pela arte. Ataca-a por dois lados. Os inimigos opuseram de início alguma resistência, depois...fugiram por outro lado da praça. Encontrou-se grande quantidade de gado e muitos dos fugitivos foram capturados ou mortos».

Após esta derrota os britânicos “submetem-se”, entregando reféns e prometendo pagar o tributo anual fixado por César.

Contentando-se com esta promessa, os romanos regressam à Gália, onde se adensava o ambiente de revolta.

 

Nesse Inverno de 54/53, os Eburones (clientes dos tréveros; ocupando parte da actual província belga de Liège e do Limburgo; o seu território chegava até ao Reno, na direcção de Colónia) aniquilam quinze coortes e dois legados de César: Quinto Sabino e Lúcio Cota.

Nérvios, aduátucos e as tribos dependentes destes povos juntam-se aos eburões e aos tréveros na revolta. Mais dois acampamentos romanos serão atacados, mas outras legiões, com César no mando, acorrem e os rebeldes são obrigados a recuar.

Também nesse Inverno, o próprio César conduz uma expedição punitiva contra o país dos nérvios. Com a chegada da Primavera de 53, reforçados com três novas legiões, os romanos multiplicam as acções de repressão, castigando sem piedade as tribos rebeldes.

Os que mais sofreram foram os Eburones, cujo país foi entregue à pilhagem. César mandou anunciar nos Estados vizinhos que autorizava todos aqueles que o desejassem a fazer saque nesse território (VI; 34), «gostando mais de arriscar nos bosques a vida dos gauleses que a dos legionários e querendo, com esta imensa invasão, aniquilar a raça e o nome deste Estado. Acorreu um grande número de gauleses, vindos de todos os lados».

 

Ainda nesse ano de 53, num intervalo das operações de repressão da revolta, com dez legiões e a cavalaria, César volta a cruzar o Reno, construindo uma nova ponte perto do local da anterior.

Informam-no que a confederação dos suevos, tendo reunido todas as suas forças, se retirara para o interior do país. César, não se atrevendo a ir mais longe que o país dos Ubii (úbios; margem direita do Reno do Lahn, abaixo de Colónia), volta à Gália.

Desta vez destrói apenas a metade da ponte da margem germana. Na extremidade da metade “gaulesa” (VI; 29) «levanta uma torre de quatro andares, deixando para a defender uma guarda de doze coortes; fortificou esta posição com grandes entrincheiramentos».

 

Nos finais do Outono de 53, como era seu hábito, partiu para a Itália do norte.

 

Em segredo, uma intensa actividade se desenvolvia, preparando a revolta em toda a Gália. Ela vai eclodir nesse Inverno de 53/52, aproveitando a ausência de César. Num dia pré-estabelecido, os Carnutes iniciam-na em Cenabum (Orléans), massacrando a guarnição e os comerciantes romanos aí estabelecidos (entre eles, Caio Fúfio Cita, cavaleiro romano a quem César entregara a intendência dos víveres do seu exército).

A rebelião estende-se rapidamente. Além dos Carnutes e Arverni, a ela se juntam (VII; 4) «os Senones, os Parisii, os Pictones, os Cadurci, os Turones, os Aulerci, os Lemovices, os Andes e todos os povos que estão junto do Oceano».

 

Os arvernos ocupavam a actual Auvergne. Na época de César, o limite setentrional do seu Estado confundia-se com o Puy-de-Dôme. Gergóvia, a sua capital, situava-se no planalto isolado de Gergoy, comuna de Roche-Blanche, departamento de Puy-de-Dôme. A 6 km a sul de Clermont-Ferrand, dominava a planície de Limagne. No século II havia existido um grande império arverno.

O Estado dos Carnutes ou Carnuti estendia-se pelo antigo Orléanais e pela região de Chartres, indo até Mantes e ao Sena. Abarcava a maior parte dos actuais departamentos do Loiret, do Loir-et-Cher e do Eure-et-Loire. A sua capital era Cenabum (Cénabo; mais tarde, Civitas Aurelianorum; actual Orléans). Era nas florestas dos carnutos que se encontrava a sede principal do druidismo.

Sénones, no sul da Champagne e norte da Borgonha. A capital era Agedincum, a actual Sens. Praças-fortes principais: Metiosedum, hoje Melun; Vellaunodunum, entre Montargis e Château-Landon.

Os parísios, habitando na confluência do Sena (Sequana) e do Marne (Matrona). Lutetia (antes chamada Lucotetia; hoje, a Cité de Paris) era a sua cidade.

Os pictavos (Pictavi ou Pictones), no antigo Poitou. A sua capital, Lemonum (cujo nome vem de “olmo” = lemo), mais tarde chamada Pictavium, é a actual Poitiers)

Os cadurcos eram clientes dos arvernos. Habitavam a região de Quercy, departamento do Lot e parte setentrional do Tarn-et-Garonne. Transmitiram o seu nome à cidade de Cahors.

Os turónios viviam na antiga Touraine.

Os aulercos ocupavam uma boa parte da actual Normandia e subdividiam-se em três grupos: os Aulerci Diablinti, ocupando a bacia de Mayenne; os Aulerci Cenomani, a sudeste dos diablintes, no actual departamento do Sarthe; os Aulerci Eburovices, a nordeste dos diablintes, no departamento do Eure.

Lemovices da Armórica, na região de Paimboeuf e de Clisson.

Os andes, a norte do Loire e nas duas margens do Mayenne, ocupavam o antigo Anjou. Departamento do Maine-et-Loire e uma parte do departamento de Sarthe.

 

As tropas romanas, com os seus quartéis de Inverno dispersos e César ausente, encontraram-se numa situação muito difícil. E até os éduos, os mais antigos aliados de Roma entre os gauleses, começam a vacilar.

 

Vercingetorix, que os arvernos proclamam rei, é o chefe supremo da rebelião (VII; 4): «investido deste poder, exige reféns de todos os Estados; ordena que um determinado número de soldados lhe seja rapidamente trazido; fixa a quantidade de armas que cada Estado tem de fabricar num prazo marcado; presta especial cuidado à cavalaria. Junta a uma extrema diligência uma extrema severidade no comando».

 

(Vamos dar a palavra a César no que se segue, num resumo de alguns itens do livro VII da “Guerra das Gálias”:)

 

«V – Tendo reunido rapidamente um exército, envia aos Ruteni (os rutenos viviam no antigo Rouergue; departamento de Aveyron; uma parte deles, ao sul do Tarn, encontrava-se já incorporado na Província: Ruteni provinciales) o cadurco Luctério, homem de uma extrema audácia, com uma parte das tropas. Vercingetorige marcha para os Bituriges (habitavam entre o Loire e o Garona: uma parte do Bourbonnais e da Touraine e a região depois chamada Berry – actuais departamentos do Cher, Indre e parte setentrional do Allier).

Os bitúriges, à sua chegada, enviam deputados aos éduos, de quem eram clientes, pedindo-lhes socorro, os éduos enviam-lhes forças de cavalaria e de infantaria. Porém, quando chegam ao Liger (que separa os bitúriges dos éduos), essas tropas detêm-se ali alguns dias. Depois, não ousando atravessar o rio, voltam para o seu país, onde dizem aos nossos lugar-tenentes que foi o temor da traição dos Bituriges que os fez arrepiar caminho.

Após a partida dos éduos, os Bituriges logo se juntam aos Arverni.

 

VI – Quando estas notícias lhe chegaram à Itália (em Ravena), César vendo que a situação da Cidade, graças à firmeza de Pompeu, tinha melhorado, partiu para a Gália Transalpina. Ali chegado, viu-se em embaraços para alcançar o seu exército: se mandasse vir as legiões à Provincia, via que no trajecto elas seriam obrigadas a combater sem ele; se fosse ao seu encontro, sentia que, naquelas circunstâncias, não podia confiar a sua vida àqueles que apenas pareciam pacificados.

 

VII – Entretanto o cadurco Luctério, enviado aos rutenos, ganha este Estado para os arvernos. Avança para os Nitiobriges e para os Gabali, recebe de um e de outro Estado reféns e, tendo reunido uma grande força, empreende invadir a Província, na direcção de Narbona.

A esta notícia, César pensou que antes do mais devia ali dirigir-se. Uma vez lá chegado, coloca guarnições nos Ruteni que dependiam da Província, nos Volcae Arecomici, nos Tolosates e em redor de Narbona, todas regiões limítrofes com o inimigo. Ordena a uma parte das tropas da Província e aos reforços que havia trazido de Itália para se reunirem nos Helvii, que estão próximos do país dos arvernos.

 

Os nitiobriges habitavam nas duas margens do Lot, na região vizinha de Agen.

Os gábalos, que eram clientes dos arvernos, ocupavam os Causses do Gévaudan, actual departamento de Lozère. A sua capital era Anderitum, hoje Anterrieux (ou, segundo o Atlas Larousse, Javols).

Os volcas Arecomici, nos actuais departamentos do Hérault e do Gard, com Nemausus por capital; actual Nîmes. O rio Orb separava-os dos volcas Tectosages, que viviam nos actuais departamentos do Aude, dos Pirenéus Orientais, do Ariège e do Alto Garona. Capital: Tolosa; hoje, Toulouse. Os Tolosates eram uma parte dos Tectosages.

Os hélvios, na orla da Provincia, viviam no antigo Vivarais, actual departamento de Ardèche. Os Cevenas separavam-nos, a noroeste, dos arvernos.

 

VIII – Tomadas estas disposições e tendo já detido e mesmo feito recuar Luctério, que achava perigoso deixar-se fechar entre as nossas guarnições, César parte para os hélvios. Ainda que as montanhas dos Cevenas estivessem naquela estação, que é a mais rude do ano, cobertas por uma neve espessa que impedia a passagem, os soldados afastaram a neve numa profundidade de seis pés e, depois de assim se haverem rasgado caminhos à força de trabalho, o exército desembocou no país dos arvernos. A sua chegada inesperada deixou-os em assombro, porque se julgavam defendidos pelos Cevenas como por uma muralha.

César ordena então aos seus cavaleiros que desfiram os seus ataques tão longe quanto possível e que lancem entre o inimigo o maior terror.

Rapidamente, pelos rumores e os correios, Vercingetorix é informado destes acontecimentos; levanta o acampamento e passa dos bitúriges para o país arverno.

 

IX – Mas César não fica mais que dois dias nestes lugares, porque tinha previsto que Vercingetorige tomaria esse partido e, a pretexto de reunir reforços e cavalaria, deixa o exército. À cabeça das tropas fica o jovem Bruto; recomenda-lhe que faça incursões de cavalaria por todo o lado; ele próprio terá o cuidado de não estar ausente do campo mais de três dias (na realidade, não retorna; mais tarde deve ter dado ordens a Bruto, que serviu assim de “isco” a Vercingetorige, para trazer as suas tropas de volta à Província).

Depois, contrariamente às expectativas dos que o acompanhavam, segue a grandes jornadas (por Yssingeaux e Annonay) para Vienna (actual Vienne), nos Allobroges. Na cidade encontra as unidades de cavalaria que para ali enviara uns dias antes. Não interrompe a sua marcha, nem de dia nem de noite, e dirige-se, passando pelo país dos éduos, ao território dos língones (ocupavam a maior parte do actual departamento do Alto-Marne e parte dos departamentos de Aube, Yonne e da Côte-d’Or. Capital, a actual Langres), onde invernavam duas legiões (em Dijon); queria, caso os éduos fossem até ao ponto de conspirar contra a sua vida, prevenir pela rapidez tais propósitos.

Ali chegado, envia ordens às outras legiões e concentra-as todas num único ponto, antes que os arvernos possam ter notícias da sua chegada.

Assim que Vercingetorix é avisado, de novo reconduz o seu exército para os bitúriges; depois, renunciando ao seu território por Gorgóbina, cidade dos boios, decide cercar esta.

 

Os boios haviam-se instalado entre o Liger e o Elaver (Allier), em volta desta praça-forte de Gorgobina, na confluência do Allier e do Loire. Hoje, talvez Saint-Parize-le-Châtel no Nièvre, talvez La Guerche no vale de Aubois, pequeno afluente da margem esquerda do Loire.

 

X – Estava-se então em meados de Fevereiro Se César, durante o resto do Inverno, mantivesse as suas legiões nos quartéis, um Estado tributário dos éduos (o dos boios) seria submetido pelos revoltosos, originando talvez a defecção de toda a Gália, pois que todos constatariam que os amigos dos romanos não podiam contar com o seu apoio. Mas se as fizesse sair dos seus quartéis de Inverno demasiado cedo, receava que a dificuldade nos transportes prejudicasse o abastecimento.

Teve de arriscar, de contrário teria visto afastarem-se de si todos os seus aliados. Assim, compromete os éduos a mandarem-lhe víveres e envia à sua frente uma deputação anunciando aos boios a sua chegada, para os exortar a manterem-se fiéis e a sustentarem o ataque do inimigo.

Deixando em Agedincum duas legiões e as bagagens de todo o exército, parte então para o país dos Boii.

 

XI – No segundo dia, tendo chegado a Velaunoduno, cidade dos sénones, e não querendo deixar atrás de si inimigos que incomodassem o seu reabastecimento, resolveu fazer o cerco e terminou a circunvalação em dois dias.

Ao terceiro dia a praça envia deputados para a rendição; César ordena que deponham as armas, tragam cavalos e entreguem 600 reféns. Deixa para concluir o assunto Caio Trebónio e marcha rapidamente para Génabo (Cénabo), dos carnutos.

Chega ali em dois dias e estabelece o seu campo em frente da praça. A hora tardia fá-lo adiar o ataque para o dia seguinte.

Ordena aos seus soldados que façam os preparativos em uso neste caso; e como a cidade tinha uma ponte sobre o Liger, no receio de que a população se escape durante a noite, põe duas legiões de vigilância.

Os Cenabenses, pouco antes da meia-noite, saem em silêncio da praça e começam a atravessar o rio. Avisado pelos seus batedores, César, havendo mandado deitar fogo às portas, introduz ali as legiões, que tinham recebido ordens para estarem preparadas, e apodera-se da praça.

Só um bem pequeno número escapou, pois que a estreiteza da ponte e dos caminhos que aí conduziam impediram a fuga da multidão, que foi aprisionada. César saqueia e queima a praça, abandona o saque aos soldados, atravessa o Liger com o seu exército e chega ao país dos bitúriges.

 

XII – Vercingetorige levanta o cerco a Gorgobina e marcha ao seu encontro.

César entretanto cercava uma praça dos Bituriges, situada no seu caminho, Noviodunum Biturigum (Neuvy-sur-Barangeon). Enviando-lhe a praça delegados a pedir perdão, desejoso de andar depressa, seguindo o método com que geralmente havia triunfado, ordena-lhes que entreguem as armas, que tragam cavalos e forneçam reféns.

Entregue já uma parte dos reféns, executava-se o resto do tratado sob a vigilância dos centuriões e de alguns soldados no interior da praça, quando se avistou ao longe a cavalaria dos inimigos, que precedia o seu exército.

Os sitiados, agora com a esperança de socorro, pegaram em armas, fecharam as portas e ocuparam as muralhas; os centuriões conseguiram sair da cidade, trazendo ilesos os seus homens.

 

XIII – César mandou sair do campo a sua cavalaria e travou-se um combate equestre; como os seus estavam em dificuldade, envia em seu socorro cerca de quatrocentos cavaleiros germanos, que tinha o costume, desde o começo da guerra, de conservar consigo. Os gauleses não puderam aguentar o embate e puseram-se em fuga.

Os sitiados, de novo a temer pelas suas vidas, prendem aqueles que passavam por ter sublevado o povo, entregam-nos a César e rendem-se.

Terminado este caso, César parte para Avaricum, a maior e melhor fortificada praça do país bitúrige, situada numa região muito fértil. Contava que a conquista desta praça o tornaria senhor de todo o Estado dos bitúriges.

 

XIV – Vercingetorige convoca os seus a conselho. Explica-lhes que há que fazer a guerra de modo inteiramente diferente do passado e que, por todos os meios, têm de se aplicar a privar os romanos de forragem e de reabastecimento. Possuem uma numerosa cavalaria e a estação favorece-os. Não encontrando erva para ceifar, o inimigo será forçado a dispersar-se para procurar feno nas herdades e, a cada dia, os seus cavaleiros poderão exterminar estes forrageadores. Além disso, a salvação comum deve fazer esquecer os interesses particulares. É preciso incendiar as aldeias e as herdades em toda a região que os romanos podem percorrer para forragear.

No que lhes toca, tudo terão em abundância, reabastecidos pelos povos em cujo território se fará a guerra.

Também há que queimar as praças cujas fortificações ou posição natural não as ponham ao abrigo de todo o perigo, a fim de que não ofereçam aos romanos uma oportunidade para obter víveres e fazer saque.

Se tais medidas parecem penosas e cruéis, ainda mais penoso será verem as suas mulheres e filhos serem levados para a escravatura e eles próprios, exterminados.

 

XV – Os gauleses aprovam-no por unanimidade. Num só dia, mais de vinte cidades dos Bituriges são incendiadas. O mesmo se faz nos Estados vizinhos. Por todo o lado não se vê mais que incêndios.

Na assembleia discutira-se também a sorte de Avárico. Convinha queimá-la ou defendê-la? Os bitúriges pedem aos outros gauleses que não os obriguem a lançar fogo, por suas próprias mãos, a uma cidade que é talvez a mais bela de toda a Gália e o ornamento e a força do seu Estado. Dizem que a defenderão facilmente, pela sua própria posição, pois que é cercada quase de todos os lados por um rio e um pântano e que só tem um único acesso, muito estreito. Vercingetorige, de início contrário, acaba por ceder às suas instâncias. A praça é assim dotada com uma forte guarnição.

 

XVI – Vercingetorix segue César em pequenas jornadas, e escolhe para seu campo uma posição defendida por lameiros e bosques (perto de Humbligny), a dezasseis mil passos de Avárico. Ali, por meio de batedores, sabia a cada instante do dia o que se passava em frente da cidade, espiando todos os nossos destacamentos de forragem e de trigo, e se estes, empurrados pela necessidade, avançavam demasiado, caía sobre os grupos dispersos e infligia-lhes grandes perdas, se bem que os nossos tomassem todas as precauções possíveis, só saindo a horas irregulares e por caminhos diferentes».

 

Mas após vinte e sete dias de cerco Avárico é tomada (VII, 28): «ninguém pensou no saque; excitados pelas fadigas do assédio, não pouparam velhos nem mulheres nem crianças. Enfim, num total de cerca de quarenta mil homens, talvez nem oitocentos, que fugiram da praça aos primeiros gritos, chegaram sãos e salvos juntos de Vercingetorige».

 

Após alguns dias de descanso em Avaricum, onde encontrou grandes provisões de trigo e outros víveres, e de haver intervido num litígio pelo poder entre os éduos, (VII; 34) «dividiu o exército em dois: quatro legiões a mando de Labieno marcharam contra os sénones e os parísios; César levou as outras seis para o país dos arvernos, em direcção a Gergovia, ao longo do rio Elaver. Deu uma parte da cavalaria a Labieno e conservou a outra».

 

Vercingetorige instala nessa cidade o seu acampamento, com uma dupla linha de muralhas a defendê-lo.

César não dispunha de forças em número suficiente para montar o cerco. Uma tentativa de assalto dos romanos é repelida, o que os obriga a retirar.

 

Este fracasso levou à defecção dos éduos, que logo são seguidos pelos belóvacos e outras tribos suas aliadas.

Labieno, sobre o Sena, depara com forças inimigas consideráveis e também é forçado a recuar. Retorna a Agedinco (Sens) e marcha dali para sul, ao encontro de César.

 

É praticamente toda a Gália que se levanta contra os romanos (VII, 63): «convoca-se uma assembleia de toda a Gália em Bibracte. Para ali partem em multidão de todos os lados...todos, sem excepção, confirmam a escolha de Vercingetorix como general em chefe. Os Remi (o território dos remos estendia-se ao longo do Aisne; capital: Durocortorum; actual Reims), os Lingones e os Treveri não tomaram parte na assembleia. Os primeiros porque continuavam fiéis aos romanos Os tréveros, porque estavam muito longe e, por outro lado, porque os germanos os acossavam, o que foi a causa de não terem tomado qualquer parte na guerra».

 

De novo a Provincia é atacada. Vercingetorige (VII, 64) «exige dos éduos e dos segusiavos (clientes dos éduos; região de Forez e do Lyonnais) 10.000 cavaleiros; junta-lhes outros 800, dá o comando destas forças ao irmão de Eporédorix (um éduo) e ordena-lhe que leve a guerra ao país dos alóbrogos. Do outro lado, lança os gábalos e os cantões mais próximos dos arvernos contra os hélvios. Envia ainda os rutenos e os cadurcos a devastar o país dos Volcae Arecomici.

Não cessa de solicitar os alóbrogos por correios secretos e embaixadas, esperando que os ressentimentos da última guerra não estejam ainda extintos nos seus corações. Promete grandes quantias em dinheiro aos seus chefes; ao seu Estado, a soberania sobre toda a Provincia».

 

«LXVI – Entretanto, as forças inimigas que se encontravam no país dos arvernos e os cavaleiros, vindos de toda a Gália, reúnem-se. Formando assim um numeroso exército, Vercingetorige – enquanto César ia a caminho do país dos Sequani, cruzando os extremos confins dos Lingones (no sudeste do seu território; por Langres e Dijon), para levar socorro à Província – veio assentar três acampamentos (colinas de Hauteville, Ahuy e Vantoux) a cerca de 10.000 passos dos romanos.

Convoca os chefes e mostra-lhes que chegou o momento da vitória. Os romanos fogem para a sua Província e abandonam a Gália, o que é suficiente para garantir a liberdade do momento, mas muito pouco para a paz e o repouso no futuro, pois que eles voltarão com maiores forças e a guerra não terá fim. É preciso atacá-los no embaraço da sua marcha».

 

Os gauleses atacam com forças de cavalaria os romanos em marcha, mas são derrotados. Vercingetorix retira para Alésia, onde ergue o seu acampamento fortificado.

 

César, «dando-se conta da posição (geográfica) da cidade e vendo que a principal força do exército inimigo, a sua cavalaria, fora batida, exortou os seus soldados ao trabalho e pôs-se a cercar Alésia (VII; 68).

 

LXIX – A praça (anteriormente chamada “Palesia”; = “Rocha”, “falésia”; a oeste de Dijon) ficava no cume de uma colina, numa posição muito escarpada (a uma altitude de 418 metros, no monte Auxois; hoje, Alise-Sainte-Reine), de tal modo que parecia não poder ser tomada senão por assédio. No sopé da colina, dos dois lados, corriam dois rios (o Ose e o Oserain). Em frente da praça estendia-se uma planície de cerca de três milhas de comprimento (a planície de Laumes). Em todos os outros pontos a praça estava cercada por colinas (montes de Flavigny, de Pennevelle, de Bussy e de Réa), pouco distantes entre si e de igual altura.

Junto da muralha, toda a parte da colina voltada para oriente estava coberta de tropas gaulesas. Na frente tinham aberto um fosso e haviam levantado uma muralha de pedra de seis pés de altura.

As fortificações dos romanos estendiam-se por um circuito de onze mil passos. Os campos foram erguidos em posições vantajosas e dispunham de vinte e três portas fortificadas. Para estas portas foram destacados, durante o dia, corpos de guarda, de modo a impedir qualquer ataque súbito; de noite eram defendidas pelas guardas nocturnas e fortes guarnições.

 

LXXI – Vercingetorix resolve afastar toda a sua cavalaria, antes que os romanos terminem as fortificações. À partida dos seus cavaleiros, dá-lhes como missão que cada um vá ao seu país e lá reúna para a guerra todos aqueles que estão em idade de pegar em armas...mostra-lhes que em caso de negligência 80.000 homens de elite perecerão com ele. De acordo com os seus cálculos, tem trigo exactamente para trinta dias; poupando-o, poderá aguentar um pouco mais. Depois destas instruções, manda partir a sua cavalaria em silêncio, à segunda vigília, pelo intervalo que as nossas linhas ainda deixam.

 

LXXII – Instruído destas disposições pelos trânsfugas e pelos prisioneiros, César iniciou as seguintes fortificações:

Abriu um fosso de vinte pés de largo, tendo o cuidado de que a largura do fundo fosse igual à distância dos bordos. Deixou entre este fosso e todas as outras fortificações uma distância de quatrocentos pés, para que os inimigos não pudessem atacar de repente durante a noite nem lançar durante o dia uma chuva de dardos sobre as nossas tropas, que tinham de prosseguir os trabalhos (sendo obrigados a abarcar tão vasto espaço, os nossos soldados não podiam guarnecer toda a obra). No intervalo assim preparado, abriu dois fossos de quinze pés de largo, ambos com a mesma profundidade. O que era interior, cavado nas partes baixas da planície, foi cheio com água vinda do rio (Oserain). Atrás destes fossos, ergueu um aterro e uma paliçada de doze pés de altura. Acrescentou-lhe um parapeito e seteiras e, na junção do aterro e do parapeito, uma paliçada de enormes peças de madeira em forquilha, para atrasar a escalada do inimigo. Flanqueou toda a obra com torres, colocadas a oitenta pés de distância umas das outras.

 

LXXIII – Era ao mesmo tempo preciso ir procurar materiais, trigo e fazer estas enormes fortificações. Com os nossos efectivos fortemente diminuídos, porque os destacamentos eram forçados a deslocarem-se a grandes distâncias do campo. Também os gauleses tentavam atacar as nossas obras, fazendo súbitas surtidas por várias portas.

Assim, César achou que era necessário aumentar ainda mais estas obras, de modo a que um menor número de soldados fosse capaz de defender as fortificações.

Cortaram-se troncos e árvores e fortes ramadas, despojaram-nas da casca e aguçaram-nas nas pontas; depois abriram-se fossos contínuos de cinco pés de profundidade; ali se enterravam estas estacas, prendendo-as por baixo, de maneira a que não pudessem ser arrancadas, e não se deixava de fora mais que os ramos; havia cinco fileiras ligadas juntas e entrelaçadas; os que por ali se metiam ficavam empalados; chamava-se-lhes “cipos”.

À frente foram cavados, em fileiras oblíquas e formando quincôncio (quatro em quadrado e um no centro), poços de três pés de profundidade, que se estreitavam pouco a pouco até à base; ali se enterravam estacas lisas, da grossura da coxa, talhadas em ponta na extremidade e endurecidas ao fogo, que não saíam do solo (no fundo do poço) senão quatro dedos; para as fixar solidamente, enchia-se o baixo dos poços com terra que se calcava na altura de um pé; o restante era coberto de espinheiros e silvados, a fim de esconder a armadilha; havia oito filas desta espécie, a três pés de distância umas das outras, a que se chamava “lírios” por causa da sua semelhança com esta flor.

Em frente destes poços, estavam inteiramente enterradas na terra estacas de um pé de comprimento, armadas com pontas de ferro; espalhavam-se por toda a parte, e em pequenos intervalos; era-lhes dado o nome de “aguilhões”.

 

LXXIV – Terminados estes trabalhos, César, acompanhando tanto quanto o terreno lhe permitia a linha mais favorável, fez, num circuito de 14.000 passos, fortificações do mesmo género, mas em sentido oposto, contra o inimigo que viesse de fora.

Ordenou a todos os seus soldados que arranjassem forragem e trigo para trinta dias.

 

LXXV – Enquanto estas coisas se passavam em frente de Alésia, os gauleses, tendo convocado uma assembleia de chefes, decidem-se, não como queria Vercingetorige – chamar às armas todos aqueles que estivessem em condições de as empunhar –, mas a exigir a cada Estado um determinado número de homens.

Pedem aos éduos e aos seus clientes, Segusiavi, Ambivareti (ambivaretos; a nordeste dos arvernos, ocupando uma parte do actual departamento do Allier), Aulerci Brannovices (os aulercos branóvices eram uma fracção isolada do povo aulerco, que alguns localizam entre o Saône e o Loire, no actual departamento do Saône-et-Loire), Blannovii (os blanóvios habitavam a norte dos aulercos branóvices, numa parte do antigo Nivernais; actual departamento do Nièvre): 35.000 homens.

Um número igual aos Arverni, aos quais se juntam os Eleutheri (ou Eleuteti; seriam uma parte dos cadurcos), os Cadurci, os Gabali e os Vellavii (ou Velauni; os velávios ocupavam o velho Velay; actual departamento do Alto-Loire), que estão desde há muito sob o domínio dos primeiros.

Dos Sequani, Senones, Bituriges, Santones, Ruteni e Carnutes: 12.000 por Estado. Aos Bellovaci, 10.000 homens. Aos Pictones, Turones, Parisii e Helvetii: 8.000 cada.

Suessiones, Ambiani, Mediomatrici (acantonados no Mosela, entre os tréveros e os leucos; capital, Divodurum; mais tarde, Mettis; actual Metz), Petrocorii (os petrocórios habitavam o antigo Périgord; actual departamento da Dordogne), Nervii, Morini e Nitiobriges: 5.000 homens por Estado. Aos Aulerci Cenomani outro tanto.

Aos Atrebates, 4.000. Veliocassi (habitavam o Vexin normando, departamento do Sena Marítimo; capital: Rotomagus; a actual Rouen), Lemovices (do actual Limousin), Aulerci Eburovices: 3.000 por Estado. Rauraci (nas duas margens do Reno, região do cotovelo que o rio faz perto de Basel; Alsácia meridional e cantão de Basel; capital da região, a partir de Augusto: Augusta Rauracorum; actual Augst) e Boii (em volta da praça-forte de Gorgobina, na confluência do Allier e do Loire): 2.000 cada.

Ao conjunto dos Estados que orlam o Oceano e que a si mesmos dão o nome de Aremoricae civitates: Curiosolites, Redones (O território dos rédones abarcava a maior parte do actual departamento de Ille-et-Vilaine; o seu nome “reencontra-se” no da cidade de Rennes), Ambibarii (os ambibários, como o seu nome indica, teriam o seu território nas duas margens de um rio; ao norte dos rédones, ocupariam o sul do actual departamento da Mancha e o norte do de Ille-et-Vilaine), Caletes (os caletos; pequeno Estado cliente dos belóvacos; actual região de Caux, no departamento do Sena Marítimo), Osismi (osismíos; no actual departamento de Finistère, na Bretanha), Lexovii e Unelli, 20.000.

Os belóvacos não forneceram o seu contingente, porque pretendiam fazer a guerra aos romanos em seu nome e à sua maneira, e não obedecer às ordens de ninguém. No entanto, a pedido de Cómio (um atrébate) e a favor dos laços de hospitalidade que a ele os uniam, enviaram dois mil homens».

 

Diz César que acorreram em auxílio dos sitiados, no total, 8.000 cavaleiros e cerca de 240.000 infantes. «Estas tropas foram passadas em revista no território dos éduos. Fez-se o seu recenseamento e foram nomeados chefes. O comando supremo foi confiado a Cómio, o atrébate, aos éduos Viridómaro e Eporédorix e ao arverno Vercassivelauno, primo de Vercingetorige.

 

LXXVIII – (os sitiados resolvem) que aqueles que a doença ou a idade tornavam inúteis para a guerra sairiam da praça; e que tudo se tentará, se os socorros tardarem, em lugar de suportar as condições da rendição. Os mandúbios (um pequeno povo cliente dos éduos, ocupando, entre os Lingones e os Haedui, a antiga região de Auxerrois, departamento de Côte-d’Or; Alésia era a sua capital), que os tinham recebido na sua praça, são obrigados a sair com os filhos e as mulheres. Tendo-se aproximado das linhas dos romanos, pediam, entre lágrimas e súplicas de todo o género, que os quisessem aceitar em escravatura e dar-lhes de comer. Mas César dispusera postos no entrincheiramento e proibira que os recebessem.

 

LXXIX – Entretanto Cómio e os outros chefes aos quais fora confiado o comando supremo chegam diante de Alésia com todas as suas forças e, depois de terem ocupado uma colina exterior, estabelecem-se a mil passos, quando muito, das nossas linhas. No dia seguinte fazem sair do campo a sua cavalaria e cobrem toda a planície (de Laumes). Estabelecem a infantaria um pouco atrás, nas elevações.

De Alésia a vista alongava-se pela planície. Ao verem as tropas de socorro abraçam-se, congratulam-se, todos os corações saltam de alegria, amontoam faxinas e enchem de terra o fosso mais próximo, preparando-se para fazer uma surtida e para quanto fosse preciso.

 

LXXX – César dispõe todo o seu exército nas duas linhas dos entrincheiramentos, a fim de cada um conheça o lugar que vai ocupar na batalha. Depois manda sair do campo a sua cavalaria e ordena que se trave combate.

De todos os acampamentos, que de todos os lados ocupavam os cumes das montanhas, a vista estendia-se sob a planície, e todos os soldados, ansiosos, aguardam o desfecho da batalha. Os gauleses misturaram com os seus cavaleiros pequenos grupos de archeiros e de infantes levando armadura ligeira, para socorrer os seus, se cedessem, e deter o choque dos nossos cavaleiros. Muitos dos nossos, por eles feridos, retiraram-se do combate.

Combatera-se desde o meio-dia quase até quase ao pôr-do-sol, sem que a batalha se houvesse ainda decidido, quando os germanos, juntos num único local em esquadrões cerrados, carregaram sobre o inimigo e o repeliram. Na derrota, os archeiros foram envolvidos e massacrados. De todos os lados, os nossos, perseguindo os fugitivos até ao seu campo, não lhes consentiram tempo de se reagrupar. Então aqueles que haviam saído de Alésia, acabrunhados e quase desesperando da vitória, regressaram à praça.

 

LXXXI – Apenas ao cabo de um dia, os gauleses, que haviam empregue este tempo a fazer um grande número de caniçados, de escadas e de arpões, saem a meio da noite em silêncio e aproximam-se das nossas fortificações na planície. De súbito, soltando um clamor para avisar os sitiados da sua aproximação, preparam-se para lançar os seus caniçados, empurrar os nossos do seu entrincheiramento a golpes de funda, de flechas, de dardos e a tudo dispor para um assalto em regra. Ao mesmo tempo, ouvindo o clamor, Vercingetorige dá aos seus o sinal de trombeta e leva-os para fora da praça.

Os nossos ocupam nas linhas os postos que lhes foram confiados nos dias anteriores. Com as fundas, as maças e os chuços que haviam colocado no entrincheiramento atemorizam os gauleses e repelem-nos. Impedindo as trevas de ver, houve tanto de um lado como do outro muitos feridos; as máquinas lançavam uma grande quantidade de dardos. Os lugar-tenentes Marco António e Caio Trebónio, aos quais incumbia a defesa destes pontos, onde viam que os nossos eram vivamente carregados, logo enviavam para lá incessantes reforços que retiravam dos fortes mais afastados.

 

Marco António, o futuro triúnviro, neto do orador António e filho de Marco António, que fizera a guerra em Creta. Era parente de César por sua mãe, Júlia. É legado de César na Gália em 52; questor em 51; em 50 será eleito áugure.

 

LXXXII – Enquanto os gauleses estavam longe do entrincheiramento conseguiam progredir, mas quando se aproximavam enterravam-se nos estrepes ou empalavam-se ao cair nos poços ou tombavam trespassados pelos dardos que lhes atiravam do alto do entrincheiramento e das torres.

Depois de serem duramente castigados em todo o lado, sem conseguirem romper as nossas linhas, vendo aproximar-se o dia, recearam um ataque de flanco a partir  do campo que dominava a planície e retiraram.

Quanto aos assediados, ocupados em fazer avançar os engenhos que Vercingetorix preparara para a surtida, enchiam os primeiros fossos; como este trabalho lhes demorara muito tempo, souberam da retirada dos seus antes de poderem aproximar-se do entrincheiramento. Tendo assim fracassado na sua empresa, voltaram à praça.

 

LXXXIII – Duas vezes repelidos com grandes perdas, os gauleses deliberam quanto ao que devem fazer. Consultam pessoas que conhecem o país e, em particular, a situação dos campos superiores e o seu género de defesa. Ao norte havia uma colina (o monte Réa) que os nossos não haviam podido abarcar nas suas linhas, por causa da sua extensão. O que os obrigou a estabelecer o campo num terreno quase desfavorável, ligeiramente em declive. Os lugar-tenentes Caio Antístio Regino e Caio Canínio Rebilo comandavam ali duas legiões.

Depois de terem mandado reconhecer os locais pelos seus batedores, os chefes inimigos escolhem 60.000 homens para o assalto; assentam secretamente entre eles o objectivo e o plano de acção, marcam a hora de ataque para o momento em que se veja que é meio-dia; põem à cabeça destas tropas Vercassivelauno. Este sai do campo à primeira vigília e, havendo acabado quase ao romper do dia de dispor as suas tropas, esconde-se atrás da montanha e deixa repousar os seus soldados das fadigas da noite. Quando viu que o meio-dia estava próximo, dirigiu-se para o campo no monte Réa. Simultaneamente, a cavalaria aproximava-se das fortificações da planície e o resto das tropas inimigas alinhava em frente delas.

 

LXXXIV – Vercingetorix, avistando os seus do alto da cidadela de Alésia, sai da praça. Manda transportar para a frente do campo as faxinas, as varas, os tectos de protecção, as “foices” e tudo o que preparara para a surtida. Um vivo combate se trava ao mesmo tempo por todo o lado, tentando forçar todas as obras de cerco; se um ponto lhes parece particularmente fraco, apressam-se a atacá-lo. A extensão das linhas impede as nossas tropas de fazer frente aos ataques simultâneos; o clamor que se eleva dos outros combates em muito contribui para assustar os nossos, pois que sabem a sua sorte dependente da salvação de outrem – e muitas vezes o perigo que não se vê é o que mais perturba.

 

LXXXV – César, que escolheu um posto de comando favorável (na montanha de Flavigny, a sul), observa o que se passa em cada lugar e envia reforços às tropas que cedem. Os dois lados têm consciência de que chegou o momento do esforço supremo: os galeses vêem-se perdidos se não atravessam as nossas linhas; os romanos esperam de um triunfo decisivo o fim de todas as suas misérias (César diz isto nas vésperas das guerras civis). O esforço recai sobretudo nas linhas superiores, onde ataca Vercassivelauno. A inclinação desfavorável do terreno tem nisso grande importância: uns atiram-nos dardos, outros aproximam-se fazendo a tartaruga; tropas frescas dos inimigos rendem constantemente os seus soldados fatigados. A terra que todos os gauleses atiram sobre as nossas fortificações permite-lhes transpô-las, cobrindo as armadilhas que havíamos dissimulado no terreno – já os nossos não têm armas nem forças.

 

LXXXVI – Quando o sabe, César envia Labieno com seis coortes em socorro das tropas em perigo; dá-lhe ordem, se não puder aguentar, de reunir as suas coortes e fazer uma surtida, mas apenas em último extremo.

Os assediados, desesperando de forçar as fortificações da planície, por causa da sua extensão, tentam escalar as elevações (da montanha de Flavigny); para lá transportam quanto tinham preparado; expulsam com uma saraivada de frechas os que combatiam no alto das torres; enchem os fossos com terra e faxinas; cortam com as “foices” a paliçada e o parapeito.

 

LXXXVII – São para ali enviadas seis coortes de reforços sob o comando do jovem Bruto; depois o legado Caio Fábio, com mais sete. Por fim, tornando-se o combate ainda mais encarniçado, é o próprio César a encabeçar um terceiro reforço com tropas frescas; o inimigo é repelido.

César dirige-se então para a posição de Labieno; retira quatro coortes do forte mais próximo e ordena a uma parte dos cavaleiros que o siga; aos outros, que dêem a volta pelas linhas exteriores e apanhem o inimigo pelas costas.

Labieno, vendo que nem o aterro nem as torres podiam deter o impulso do inimigo, reúne trinta e nove coortes, que teve a possibilidade de retirar dos postos mais próximos e, por mensageiros, informa César da sua intenção.

 

LXXXVIII – César apressa-se a tomar parte no combate. A sua chegada faz-se conhecer pela cor do seu vestuário: o manto de general que tinha por hábito usar nas batalhas.

Os nossos soldados, renunciando ao dardo, combatem com o gládio. De repente, a nossa cavalaria aparece na retaguarda do inimigo; outras coortes se aproximam. Os gauleses lançam-se na fuga, com os nossos cavaleiros a cortarem-lhes a retirada. É grande a carnificina.

Sedúlio, chefe e primeiro cidadão dos Lemovices, é morto; o arverno Vercassivelauno é apanhado vivo quando se preparava para fugir; setenta e quatro insígnias militares são levadas a César; daquele tão grande número de homens, bem poucos voltaram ao campo sem ferimentos.

Avistando da sua praça-forte o massacre e a fuga dos seus compatriotas, desesperando de se salvarem, os sitiados mandam regressar as tropas que atacavam os nossos entrincheiramentos.

A esta notícia, os gauleses no exterior logo fogem do seu campo. Se os nossos soldados não estivessem exaustos pelos numerosos combates e por toda a fadiga do dia, todas as torças do inimigo poderiam ter sido destruídas. Um pouco depois da meia-noite a cavalaria, lançada em sua perseguição, alcança-lhes a retaguarda, aprisionando e massacrando uma boa parte deles. Os outros, tendo conseguido fugir, dispersam-se pelos seus Estados.

 

LXXXIX – No dia seguinte Vercingetorix convoca a assembleia; declara que empreendeu esta guerra pela liberdade comum e que, uma vez que tem de ceder à fortuna, a eles se oferece, deixando-lhes a escolha de apaziguarem os romanos dando-lhe a morte ou entregando-o vivo.

Acerca deste assunto enviam deputados a César. Ele ordena a deposição das armas e a entrega dos chefes. Instala-se no entrincheiramento à frente do campo. Ali, trazem-lhe os chefes; entregam-lhe Vercingetorige; lançam as armas a seus pés. César reserva-se os prisioneiros éduos e arvernos, para através deles tentar voltar a ganhar os seus Estados, e distribui o resto dos prisioneiros pelos soldados, a título de saque.

 

XC – César parte para os éduos e recebe a submissão do seu Estado. Deputados enviados pelos arvernos ali o vêm encontrar, prometendo que executarão as suas ordens; exige-lhes um grande número de reféns.

Envia depois a suas legiões para os seus quartéis de Inverno e restitui aos éduos e aos arvernos cerca de 20.000 prisioneiros. Tito Labieno parte com duas legiões e a cavalaria para o país dos Sequani; junta-se-lhe Marco Semprónio Rutílio (provavelmente prefeito da cavalaria). Caio Fábio e Lúcio Minúcio Básilo, com duas legiões, nos Remi, para que nada tenham a temer dos belóvacos. Caio Antístio é enviado aos Ambivareti; Tito Séxtio aos Bituriges; Caio Canínio Rebilo para os Ruteni, cada um com uma legião.

Quinto Túlio Cícero e Públio Sulpício invernam em Cavilono e Matiscão (Matisco; hoje, Mâcon), entre os éduos, sobre o Arar, para garantir o abastecimento de trigo. César decide passar o Inverno em Bibracte.

Quando estes acontecimentos foram conhecidos em Roma, por uma carta de César, ali se celebraram suplicações durante vinte dias».

 

O ano seguinte, o de 51, será gasto na repressão dos últimos focos da revolta: Bituriges, Carnutes, Bellovaci, Eburones (de novo) vêem os seus territórios serem devastados.

Em seguida são derrotados os Andes e o seu chefe Dumnaco, que perdem 12.000 homens em batalha. O sénone Drappes e o cadurco Luctério sofrem a mesma sorte. Na praça cadurca de Uxellodunum (“castelo alto; talvez o Puy d’Issolud, perto de Vayrac, no Lot), César «mandou cortar as mãos a quantos tinham empunhado armas, deixando-lhes a vida, para que melhor testemunhassem o castigo». Ao mesmo tempo, no norte, Labieno vence em batalha e submete os Treveri.

 

A Gália estava agora submetida e pacificada.

Diz Hírcio (VIII; 49) que «César, ao invernar na Bélgica (Inverno de 51/50), não teve outro objectivo que não fosse manter os Estados na nossa aliança e não lhes dar esperança nem pretexto de guerra. Não havia nada, com efeito, que menos desejasse, que ver-se na necessidade combater no momento da sua partida (o seu proconsulado aproximava-se do fim), e deixar atrás de si, na altura em que ia levar o exército, uma guerra que toda a Gália empreenderia de boa vontade se nada tivesse a temer.

Assim, tratando honrosamente os Estados, cumulando de recompensas os principais cidadãos, não impondo nenhum novo encargo, manteve facilmente a paz na Gália, esgotada por tantos revezes».

 

Aulo Hírcio, amigo de Cícero, abraçou o partido de César, de quem foi legado na Gália. Cônsul em 43 juntamente com Caio Víbio Pansa, morrerá com este em Mutina. É o autor do livro VIII da “Guerra das Gálias”.

 

Nos finais desse Inverno (já no ano de 50), César parte para a Gália Cisalpina, onde é festivamente recebido.

 

Plutarco (“Júlio César”, XV) diz que César, durante os nove anos passados nas Gálias, conquistou mais de 500 ópidos e submeteu 300 tribos.

Os romanos apoderaram-se de riquezas colossais. A quantidade de ouro caída nas suas mãos foi tal que levou á baixa do preço deste metal no mercado.

César e os seus ajudantes enriqueceram, tal como os bandos de financeiros, comerciantes, publicanos, usurários e demais predadores que se lançaram sobre o país: o saqueio provocou uma enorme especulação e a alta do valor das acções das “sociedades” dos equites.

 

Esta imensa espoliação permitiu a César e aos seus agentes uma política demagógica em vasta escala, recorrendo à corrupção directa, à organização de espectáculos para o povo, às distribuições gratuitas de géneros, à construção de edifícios, etc. Graças a esta política, cresceu em muito a sua influência sobre as massas de cidadãos romanos.

 

Nas guerras das Gálias, César formou um magnífico exército, temperado e disciplinado, pronto a seguir o seu imperator em qualquer empresa.

 

A SITUAÇÃO EM ROMA. RUPTURA ENTRE CÉSAR, O SENADO E POMPEIO.

 

Após o consulado de Crasso e Pompeio, a crise política em Roma evoluiu para a absoluta anarquia. As eleições converteram-se em batalhas campais entre os sequazes de uma e de outra facção. Devido aos distúrbios, já as eleições de 55 para o consulado e a pretura são proteladas por sete meses.

Este estado de coisas resultava, em parte, da decadência da própria condição cidadã. Mas era também resultado da actividade dos agentes de César e de Pompeu.

Clódio e Milão eram os “campeões” das turbas, ambos dispondo de bandos mercenários, formados por escravos e marginais, capazes de todas as violências.

 

Nos inícios de 52, num recontro casual, Clódio é morto na Via Appia por agentes de Milão. Os seus apoiantes organizam-lhe no forum grandiosas exéquias e, durante a cerimónia, incendeiam o edifício do senado.

Pompeio, que o senado nomeia cônsul sine collega pelo período de dois meses, restabelece rapidamente a ordem pela força das armas.

Durante a sua ditadura, promove severas leis penais contra os responsáveis pelas desordens, contra a corrupção (dirigidas contra os agentes de César) e outros crimes. São revistas as listas dos juízes e iniciam-se numerosos processos contra os fautores dos distúrbios.

O Senado prorroga-lhe por mais cinco anos o governo das Espanhas, sem tomar medida análoga em relação a César.

Será ainda aprovada, por iniciativa de Pompeio, uma lei que visava César em particular (já veremos como). O governo das províncias deixava de ser conferido aos cônsules e pretores imediatamente após o termo das suas funções. Só podiam ocupar os cargos de governadores provinciais quando houvessem transcorrido, no mínimo, cinco anos sobre a cessação dos seus mandatos no consulado e na pretura.

César, a braços com a rebelião das Gálias, não teve qualquer possibilidade de contrariar estas medidas.

 

Em 54 falecera Júlia, filha de César e esposa de Pompeio. Em 53 é Crasso que morre. A partir desse momento o triunvirato esvanece-se de facto e de direito.

Quanto mais cresciam o poder e a popularidade de César mais se cavava o fosso entre os dois candidatos à ditadura e mais se reforçavam os laços entre Pompeu e os optimates. Aos olhos do senado, ambos eram inimigos que procuravam destruir a República oligárquica, porém, escolhendo o mal menor, aproximaram-se de Pompeio. César, pelo seu poder, apresentava-se como o mais perigoso. Pompeio, ao invés, dada a sua proverbial indecisão, seria bem mais maleável. Assim, nos anos de 52 e 51, a aliança entre Pompeio e o senado consolidou-se.

 

Já em 51 é levantada no senado a questão dos prazos do proconsulado de César. Os seus poderes como procônsul deveriam cessar a 1 de Março de 49. Segundo o acordo de Luca, César assumiria o prometido cargo de cônsul em 1 de Janeiro de 48; havia, pois, um período de dez meses em “claro”, que os seus adversários tencionavam aproveitar para o fazer comparecer ante tribunal (as suas campanhas militares proporcionariam, para isso, abundantes pretextos).

Segundo o antigo procedimento, aquele “claro” de dez meses não se poderia verificar. Os substitutos de César nas “suas” províncias só podiam ser designados de entre os funcionários que desempenhassem os seus cargos no ano de 49. E estes apenas poderiam suprir-lhe as funções a 1 de Janeiro de 48. Assim, César manteria até esta última data o seu posto nas províncias, passando logo a assumir o consulado.

Porém, em desfavor de César, intervinha aqui a “interpretação” da nova lei promovida por Pompeio. Os sucessores de César nas províncias deveriam ser escolhidos entre os ex cônsules e ex pretores que houvessem cessado as suas funções há cinco anos. E personalidades em tais condições havia-as em abundância – César podia pois ser substituído a 1 de Março de 49.

 

Enquanto no senado os partidários e os adversários de César se digladiavam em intermináveis discussões sobre o imbróglio jurídico, Caio Escribónio Curião, tribuno do povo de 50 e agente de César, tratando de resolver a querela política, propõe ao senado um compromisso. Que César e Pompeio renunciem aos seus poderes ao mesmo tempo. O senado aceitou a proposta de Curião...mas Pompeio rejeitou-a categoricamente.

 

César, nos finais de 50, encontrando-se então em Ravenna, dirige ao senado uma carta em que se afirma disposto a novas concessões. Curião leu-a na sessão de senado de 1 de Janeiro. Os senadores, num primeiro momento, inclinam-se a um compromisso, mas Pompeio, apoiado pelos senadores que lhe eram afectos, deitando mão da ameaça, faz o senado aprovar que César transmita quanto antes os seus poderes ao sucessor a nomear, e que tem de licenciar o seu exército, sob pena de ser declarado inimigo da pátria.

Marco António e Quinto Cássio, tribunos do povo de 49 e partidários de César, interpõem o seu veto, o que tornou ainda mais tenso o confronto. A 7 de Janeiro o senado vai declarar a República em perigo, encarregando Pompeio de recrutar tropas em Itália.

António e Cássio, disfarçando-se de escravos, fogem para se juntarem a César em Ravena.