IX - Os castelhanos entram em Portugal

65. COMO ELREI DE CASTELA ENTROU EM PORTUGAL, E DALGUNS FIDALGOS QUE SE VIERAM PARA ELE.

Foi-se o Bispo da Guarda e chegou ao lugar, e elRei partiu de Prazença e chegou a Perosim, junto com Fonte Guinaldo [1], e ali lhe veio recado do Bispo de que tinha já a cidade por ele e que fosse depressa, de guisa a que amanhecesse no lugar, porque os da vila e do termo sabiam já como ele vinha, e que se àquele tempo aí não fosse, que era dúvida de o haver, porque seriam já todos apercebidos e ele não o poderia padecer bem.

ElRei, como viu o seu recado, partiu de Perosim à tarde e andou toda aquela noite, e a Rainha com ele, e chegou à Guarda em amanhecendo [2], e não iam consigo mais de até trinta homens de armas de seus oficiais, dos que andavam com ele de cote [3]. O Bispo saiu a recebê-lo com a sua clerezia em procissão o mais honradamente que pôde, e assim entrou na cidade, ele, a Rainha e os que consigo iam, e foi elRei pousar aos Paços do Bispo.

Álvoro Gil não saiu a ele, e esteve quedo em seu castelo, sem mostrar por qual parte tinha [4]. Mas veio Vasco Martins de Melo – que fora com a Rainha e pousava em Fonte Guinaldo, a quem elRei mandara dizer, quando partiu de Perosim, que se fosse em pós ele [5] à Guarda – e Martim Afonso, rico homem, seu irmão, que tinha Celorico e Linhares, foi o primeiro que se veio para elRei de Castela e ficou por seu ali na Guarda, da qual coisa desprouve [6] muito a Vasco Martins, porque seu irmão começara de se vir para elRei antes que nenhum outro.

A elRei veio ao outro dia alguma daquela gente por que mandara, que seriam até duzentas lanças, e ao cabo de três dias chegou o Conde de Mayorgas, depois, Pêro Fernandez de Valasco, Pêro Sarmento [7] e outros capitães, com umas quinhentas lanças.

ElRei, vendo que Álvoro Gil não lhe vinha falar nem saía fora do castelo, disse a Martim Afonso de Melo que houvesse com ele para que lhe falasse [8]. Fê-lo assim Martim Afonso e trouxe-o seguro de ida e vinda, e ele falou com elRei, tornou-se para o seu castelo e não lhe falou depois mais. Ao outro dia Vasco Martins mandou falar a Álvoro Gil por Martim Afonso, seu filho, dizendo que fizera grão bem em não se vir para elRei de Castela, nem se lhe desse, que o fazia certo que elRei não jazeria sobre ele [9], senão que [10] passava por aí e ia-se em seu caminho, e se tal coisa [11] aviesse que elRei o quisesse fazer [12], que lhe prometia de se lançar com ele [13], com os seus filhos e com os que tinha, e o ajudaria a defender o castelo.

ElRei houve menencoria de Álvoro Gil por lhe mais não falar nem se vir para ele, mas vieram, dos cavaleiros e escudeiros daquela comarca, enquanto elRei esteve na Guarda, estes aqui nomeados, Martim Afonso de Melo, que foi o primeiro, Vasco Martins da Cunha, Martim Vasques, seu filho, e outros seus filhos, FernandAfonso de Merlo [14], Álvoro Gil de Carvalho e outros.

ElRei recebia-os mui bem, dizendo que lhe fizessem preito e menagem por as fortalezas que tinham, e eles faziam-lhe menagem de receber e haver, por sua rainha e senhora, a Rainha dona Beatriz, sua mulher, e a ele, assim como seu marido, e isto todavia com o entendimento de que os tratos fossem guardados pela guisa em que foram postos entre ele e elRei dom Fernando. A elRei pesava muito desta condição que punham em tais menagens, porém dava lugar a isto [15], porque não podia mais fazer por então.

E como quer que estes cavaleiros e escudeiros se viessem ali para elRei, porém, segundo alguns escrevem, não se contentavam do gasalhado [16] e acolhimento que achavam nele, e assim como vieram para ele cedo, assim começaram de tratar entre si para se partir logo, e isto dizem que foi por duas razões, a primeira, porque elRei era homem de poucas palavras e não muito ledo, e eles haviam usado com elRei dom Fernando, que era de grandes gasalhados, a outra, porque elRei lhes não dava logo dinheiros, e ele não podia isto fazer, pois tão depressa entrara no reino, para cobrar a posse dele, que não tivera sentido de esperar por nenhuns dinheiros.

66. DAS RAZÕES QUE BEATRIZ GONÇALVES DISSE A SEU FILHO PARA NÃO DAR OS CASTELOS QUE TINHA A ELREI.

Um bom fidalgo daquela comarca, chamado por nome Gonçalo Vasques Coutinho, era alcaide de Trancoso, Lamego e outros lugares, e estando ele em Trancoso, quando elRei chegou à Guarda, pensou elRei que se viesse para ele, como fizeram alguns outros, e ele demovido foi, segundo alguns escrevem, mas outros assinam [17] em seus livros algumas razões por que o deixou de fazer.

Uns contam que ele enviou então um escudeiro com cartas de crença [18], uma a Vasco Martins de Melo e outra a Vasco Martins o moço, seu filho, que morreu depois na batalha, como adiante ouvireis, pelo qual lhes rogava que o aconselhassem a que maneira teria nesta entrada que elRei fazia no reino por esta guisa, porque via muitos fidalgos daquela comarca virem-se para elRei de Castela, e ele não faria sobre isto nenhuma coisa sem o seu conselho, e que eles lhe mandaram dizer que se não viesse para ele, que elRei de Castela não vinha senão para passar em seu caminho, e não para o cercar a ele nem a outros, posto que logo para ele não se viessem.

Outros contam que não foi por esta razão, mas que Beatriz Gonçalves, sua mãe, estava com ele naquele lugar, e que falando com ela de que maneira teria em seus feitos, pois elRei de Castela entrava no reino por aquela guisa, sua mãe lhe respondeu e disse:

Filho, com os néscios e com os trigosos [19] ganham os homens, e nas coisas que são para esguardar [20] sempre a trigança é danosa. E os reis e os poderosos, muitas vezes, cuidam de acabar coisas de que hão grão desejo, e às vezes não se lhes segue como eles pensam. ElRei de Castela entra neste reino quebrando os tratos, segundo bem vemos, e posto que alguns se venham para ele e fiquem por seus, não praz a muitos, porém, com sua vinda, antes pesa a todos os povos, tendo que faz o que não deve, como é verdade, quebrando as avenças que entre ele e elRei dom Fernando foram firmadas.

Lisboa tomou o Mestre por seu regedor e defensor como souberam que elRei de Castela queria vir, e são já outras cidades e vilas do reino com eles nesta tenção, assim que já estes feitos levam começo para se não livrarem [21] muito de ligeiro, como quer que [22] alguns digam que a voz que Lisboa e os outros lugares tomam contra elRei é um pouco de vento [23], e por isso me parece que é bem que vos deixeis assim estar até que vejais que termo Deus põe nesta coisa, e assim podeis encaminhar vossos feitos como sentirdes para mais vossa honra e proveito.

A ele pareceu este bom conselho e creu sua mãe no que lhe dizia, e esta foi a razão por que não veio falar a elRei, e não a primeira, como alguns disseram.

67. DO RECADO QUE MANDOU A RAINHA DONA LIONOR A ALGUNS CONCELHOS DEPOIS DA MORTE DO CONDE JOÃO FERNANDES.

No mês passado [24] cerca deste, onde [25] se começava o novo ano em Castela da nascença de nosso Senhor Jhesu Christo de mil trezentos e oitenta e quatro, e da era de César de mil quatrocentos e vinte e dois, depois da morte do Conde João Fernandes, estando a Rainha então em Alenquer, mandara cartas a alguns concelhos em que largamente lhes fez saber quanto ficava lastimada e cheia de quebranto pela morte delRei seu marido, e como, pelo seu finamento, os reinos ficavam à Rainha dona Beatriz, sua filha. 

E que para se não seguir o ajuntamento destes reinos com os de Castela, mas sempre serem coroa sobre si, como até ali foram, segundo nos tratos era divisado e elRei dom Fernando deixara em seu testamento, ela tomara carrego do regimento deles por aquele tempo que o havia de ser, posto que em isto sentisse grão trabalho do corpo e aflição para a sua alma, mas que o fazia para salvação deles todos, e para lhes satisfazer do muito serviço e honra que deles havia recebido.

E que estando ela em Lisboa, em seus Paços, ordenando o que cumpria para serviço de Deus e proveito dos reinos, que tornara o Mestre de Avis, que ela já tinha enviado para pôr recado nas vilas da Ordem e em algumas outras daquela comarca, e matara o Conde João Fernandes, por cujo azo, e do alvoroço da cidade, se partira dali e se fora para Alenquer. E que se enviava querelar a eles de tais coisas [26] para se sentirem disto, às quais a sua tenção não era tornar com vontade de vingança, mas somente para fazer direito e justiça.

E que entendia de enviar recado a elRei de Castela que se sofresse [27] de entrar no reino para todos eles não receberem dano e os reinos ficarem sobre si [28], o que seria em grande dúvida se a Rainha, sua filha, e elRei seu marido cobrassem logo o regimento deles. E que isto lhes enviava notificar como a pessoas de que muito fiava, e para verem a sua intenção qual era em prol e honra deles todos.

68. COMO A RAINHA ESCREVEU A ELREI QUE ENTRASSE NO REINO, E A TENÇÃO PORQUE O FEZ.

Mandadas tais cartas pelo reino, cuja conclusão em breve dissemos, os enfermos corações de todos, postos em grão pensamento, não sabiam que cuidar em tais feitos. Era-lhes muito grave de ouvir que elRei de Castela viesse ao reino, vendo-o posto em grande balança para de todo ficar com Castela, e isto para a maior parte do povo miúdo, que não era do bando da Rainha.

E uns tinham que elRei se sofreria de tal entrada, escrevendo-lhe a sua sogra daquela maneira que dissera, mormente por razão dos tratos que com tais menagens e juramentos eram feitos. Outros de todo perdiam esta esperança, vendo sucessos de desvairadas [29] guisas espargidas pelo reino, e como [30] já diziam que vinha depressa para logo cobrar a posse dele.

Neste comenos [31] entrou elRei, como ouvistes, e estando na Guarda em este mês de Janeiro que dissemos, chegaram cartas afincadas [32] da Rainha muito em contrário do que ela antes escrevera aos concelhos, pois ela lhes certificava que entendia de enviar o seu recado a elRei que se sofresse de entrar no reino, para eles todos não receberem dano, e nestas fazia saber a elRei como todas as coisas em Lisboa haviam sido passadas, assim da morte do Conde João Fernandes, que o Mestre matara em sua presença e Paços, como da morte do Bispo e dos outros que aquele dia foram mortos na Sé, e que ela, com receio e muito nojosa, partira de Lisboa e se viera a Santarém, onde por então estava, e que por isso lhe rogava que pusesse aguça [33] no seu caminho e chegasse ali, que ela se tinha por mui desonrada do Mestre dAvis e dos moradores de Lisboa, os quais entendia que não queriam obedecer a ele nem haver a Rainha dona Beatriz, sua mulher, por senhora. E que a discórdia e levantamento dos da cidade, de que o Mestre era capitão e cabeça, pondo-se por eles e defendendo-os, chamando-se Regedor e Defensor do reino em suas cartas, seria azo do seu grande acrescentamento, porém que ela tinha irmãos e grandes fidalgos seus divedos [34] bem poderosos, que haviam assaz de fortalezas com que lhe podiam fazer boa ajuda em muitas guisas, e também a vila de Santarém em que ela estava, que era uma das melhores do reino, e que portanto cumpria muito de dar trigança [35] à sua vinda para onde ela estava.

ElRei de Castela, vendo seu recado, prouve-lhe muito com ele, e como aquele que havia grão desejo de entrar no reino, não lhe foram menos estas cartas da Rainha, quando assim chegaram, senão ajuntar esporas ao que havia vontade de correr, e logo ao outro dia ordenou de partir.

Onde sabei que a razão por que a Rainha escreveu tais cartas, segundo alguns em seus livros assinam [36], foi o grande queixume que ela tinha do Mestre dAvis e doutros do reino de que suspeita havia, e isso mesmo dos povos de Lisboa e dalguns lugares que tinham com eles [37], entendendo ela, depois que elRei de Castela chegasse, que faria que as gentes com o seu grão poder lhe obedecessem, e que a vingaria de todos – especialmente dos homens e mulheres de Lisboa, de quem ela dizia que nunca havia de ser vingada até que tivesse um tonel cheio das línguas delas, e sem dúvida se as coisas se seguiram como ela cuidava, estranhas foram as justiças que ela mandara fazer nos moradores daquela cidade, por o que sabia que diziam dela, assinadamente [38] na morte do Conde – e depois que desta guisa fosse vingada, e o reino todo assossegado, que se tornaria elRei para sua terra e ficaria ela em sua honra e regimento, assim que [39] nenhum daí em diante, por grande que fosse, e muito mais pouco [40] os pequenos povos, seria ousado de lhe contradizer, receando semelhável vingança, e ela vingada e o reino sem alvoroço, se iria elRei para sua terra e ficaria ela como desejava.

69. COMO ELREI DE CASTELA SEGUIU EM SEU CAMINHO E CHEGOU A SANTARÉM.

Partiu logo elRei da Guarda e foi-se em romaria a Santa Maria dAçores, jantou [41] naquele lugar e foi dormir a Celorico, que lhe já Martim Afonso de Melo tinha dado, e esteve aí quatro dias. Dali partiu, andou o seu caminho e chegou por Coimbra, que tinha o Conde dom Gonçalo, irmão da Rainha, e estava aí Gonçalo Mendes de Vasconcelos, tio dela, e estes não se vieram para elRei nem o acolheram na cidade, mostrando que lhes não prazia com ele. Depois chegou a Miranda, onde estava o Conde de Viana, o qual veio recebê-lo e ficou por seu, e esteve elRei ali um dia. Ao outro seguinte dia partiu de madrugada e foi dormir ao Chão do Couce, e no outro dia foi comer a Ceras e dormir a Tomar.

Então pensou elRei que se viesse para ele o Mestre de Christos, sobrinho da Rainha dona Lionor, filho de sua irmã, e quando chegou a Tomar e soube que se partira daí, houve disto grande queixume, porque cuidou que ficasse por seu como os outros, e foi elRei pousar às pousadas do Mestre que estão no Rossio.

E certamente, segundo escreve um autor em sua história, assim foi de facto que o Mestre se ia para elRei ao caminho, para ficar com ele e o servir, e um cavaleiro da sua Ordem, quando assim o viu ir e a tenção que levava, disse ao Mestre em esta guisa, Senhor, a mim parece que vós ides receber elRei de Castela para ficar com ele e serdes seu, e vós, Senhor, se isto bem esguardardes, não o deveis assim de fazer até que vejais a que termo estes feitos querem vir, e depois que virdes como se encaminham, então podeis fazer o que sentirdes para vossa honra e proveito sem ficar com nenhum prasmo. Com estas e outras razões que assim foram falando, foi o Mestre movido a não ir por diante, tornou-se para Pombal e ali esteve.

ElRei dormido em Tomar, houve aquela noite guarda no arrabalde e foi feita uma escaramuça, em tal guisa que mataram um que havia por nome Henrique Alemão e uns cinco até seis com ele. ElRei partiu daí à meia-noite e foi amanhecer à Golegã, aí comeu e depois partiu para Santarém, e a Rainha, sua mulher, com ele. E antes duas léguas que chegasse a Santarém, juntaram-se-lhe esses que eram com a Rainha [42], não porém todos juntos, mas cada um como lhe prazia, e saíram-no a receber, beijando a mão a ele e à Rainha, oferecendo-se por seus, entre os quais estava Gonçalo Vasques dAzevedo, e João Gonçalves Teixeira [43], dizendo a elRei, da parte da Rainha dona Lionor, que a Rainha sua mãe se enviava muito encomendar a ele, e que fosse mui bem-vindo, que havia tempo que o desejava ver em Portugal.

A Rainha dona Beatriz, antes que chegasse às vinhas de Santarém, deteve-se ali um pouco para se corrigir como lhe cumpria, porque trazia os seus corregimentos [44] pelo caminho, e mandou elRei a Pêro Fernandez de Valasco e a Pêro Sarmento que se fossem adiante e o aguardassem junto ao Chão da Feira, que é ante a porta do castelo, e eles fizeram-no assim, e Gonçalo Vasques e João Gonçalves tornaram-se para a Rainha.

70. COMO O MESTRE SE TORNOU DE ALENQUER PARA LISBOA.

O Mestre, que deixámos em Alenquer, trazia enculca [45] com elRei de Castela depois que lhe disseram que era na Guarda, para saber as gentes que com ele vinham e que caminho queria trazer, e antes alguns dias que chegasse a Santarém, chegou ao Mestre recado em como se vinha para ali direitamente [46], que trazia as gentes espalhadas e não estava muito acompanhado.

O Mestre disse a NunÁlvares como elRei de Castela vinha pelo reino, que seria mui cedo em Santarém e que lhe parecia que era bem de se tornarem para a cidade, para pôr guarda e recado nela. NunÁlvares respondeu a isto, dizendo que posto que eles se tornassem para a cidade, tão bem saberia elRei de Castela o caminho para vir sobre ela como eles que a haviam de defender, mas que o seu conselho era que enquanto elRei de Castela vinha com pouca gente, antes que se juntasse com ele maior poder, trouxessem enculca com ele [47], e que quando chegasse ao termo de Santarém, lhe saíssem eles de travessa [48] ao caminho e pelejassem com ele, e assim o poderiam desbaratar ligeiramente, por cujo desbarato adiantariam muito em sua demanda.

O Mestre disse que lhe parecia bom o seu conselho mas que isto não se podia fazer a seu salvo, porquanto eram ali muito poucos. Em isto veio-lhe outro recado, que elRei de Castela havia de ser naquele dia em Santarém, e o Mestre partiu com suas gentes e veio-se para Lisboa.

71. COMO ELREI FALOU À RAINHA E A LEVOU CONSIGO PARA O MOSTEIRO ONDE POUSOU.

Antes alguns dias que elRei de Castela chegasse a Santarém, mandou adiante Pêro Carrilho, seu Apousentador-mor, para requerer à Rainha que lhe mandasse dar pousadas e bairro para os seus, e ela houve conselho, com esses fidalgos e senhores que com ela estavam, e acordaram que elRei e os que com ele vinham não pousassem dentro da vila, mas que elRei pousasse num dos mosteiros, qual lhe mais prouvesse, e os seus de fora, como melhor pudessem. O Apousentador, vendo isto, não se tornou porém para elRei, mas aguardou ali até que viesse.

A vila começou de se velar melhor, que antes nem por isso, como se fosse em guerra.

Ora contam alguns que não embargando que a Rainha dona Lionor mandasse chamar elRei de Castela e lhe prouvesse muito da sua vinda, porém, como era mulher sages e apercebida em tudo, não tinha o coração bem seguro de que elRei teria em seus feitos aquela maneira que ela desejava e queria, e receando muitas coisas e de nenhuma sendo segura, que duvidava muito de sair do castelo e se pôr em poder delRei – receando o que lhe depois aveio – e que não quisera sair lá fora a lhe falar, mas que fosse elRei entretanto pousar a um desses mosteiros e que depois acordariam a maneira que teriam em suas falas, dizendo-lhe então Martim Gonçalves dAtaíde, Gonçalo Rodrigues de Sousa e outros fidalgos que todavia não se pusesse em poder dele, porque poderia ser que a retivesse elRei até que lhe entregasse aquele lugar e os outros todos que por ela estavam, mas Gonçalo Vasques e João Gonçalves disseram à Rainha que o não fizesse por nenhuma guisa, e pois que seus filhos eram e os fizera vir de seu reino chamados por suas cartas, que dela seria grande desmesura, e coisa de que elRei teria má suspeita e grande queixume, não sair logo a os receber e lhe falar, mormente que eles entenderam nele, quando o foram receber, que ele lhe tinha bom desejo e vontade de lhe fazer prazer em toda a coisa que pudesse.

E dizem que em isto chegou elRei a Santarém numa terça-feira depois de véspera, aos doze dias de Janeiro, e a Rainha dona Beatriz, sua mulher, a qual vinha em cima duma mula de sela, coberta de dó, e dona Beatriz de Castro e outras donas e donzelas com ela. Com elRei vinham até cento e oitenta a cavalo, todos armados, de lanças levantadas e trombetas consigo – mas logo à tarde vieram muitos [49] – e descavalgou ele, e sua mulher, num grande chão que se faz ante a porta do castelo, e todos os fidalgos, donas e donzelas que em sua companha vinham.

E dizem que estando assim pé terra [50], o foram dizer à Rainha, e que então saiu ela de mamente [51], coberta de um grande manto preto, que lhe não aparecia o rosto, trazendo-a pelo braço Vasco Peres de Camões e vindo poucos com ela. E elRei, como a viu, foi-a logo receber, abraçando-a ele e sua filha. E ela, choramingando, começou logo de dizer a elRei, Filho, Senhor, faço-vos queixume do Mestre dAvis, que matou o Conde João Fernandes em meus Paços cerca de minhas fraldas e me deitou fora de Lisboa, a mim e a quantos eram meus e tinham da minha parte. E elRei lhe respondeu que a isso era vindo, para lhe fazer todo o prazer e honra e lhe dar vingança do que assim lhe fora feito. E que então se despediu a Rainha delRei e de sua filha, e que se quisera tornar para o castelo, e que elRei a quisera deixar ir se não fora Pêro Fernandez de Valasco, que disse que razoada coisa lhe parecia dele a levar consigo, pois havia tanto tempo que não o via nem a sua filha, e que todavia a levasse. Sem embargo disto, a Rainha quisera tornar-se para o castelo, dizendo a elRei, pois que ainda não estava apousentado, que a deixasse ir por então, e que ao outro dia pela manhã se iria para ele e para sua filha. E elRei disse todavia que se fosse com ele, e tomou-a pelo braço duma parte e a Rainha da outra, e levaram-na consigo para o mosteiro de São Domingos, onde elRei havia de pousar.

Mas pois que do começo desta obra seguimos por desvairadas [52] opiniões, para cada um reter qual lhe mais prouver, digamos aqui outro razoado que muito em parte desacorda deste, porque um autor que dá testemunho que esteve presente, diz que já ela estava na ponte à porta do castelo quando disseram que elRei vinha. E que elRei e a Rainha ambos chegaram juntos e a abraçaram, beijando-lhe sua filha a mão, e que as razões que eles houveram nenhum as ouviu, e que então a apartou elRei um pouco da Rainha, sua filha, e falou um mui pequeno espaço com ela, sem nenhum ouvir o que diziam, e depois a levou para o mosteiro de São Domingos, e assim foi a sua partida, e doutra guisa não, pondo-se logo guarda essa noite de duzentas lanças com elRei, e assim daí em diante.

72. COMO ELREI ORDENOU DE SE VIR PARA A VILA, E DA MANEIRA COMO ENTROU NO LUGAR.

As falas e razões que elRei aquela noite houve com a Rainha dona Lionor, sua sogra, nenhum claramente as põe em escrito, salvo quanto dizem que elRei lhe disse: que ele não lhe podia dar vingança do Mestre nem dos outros de que ela queria, nem subjugar vila nem cidade das que tinham voz contra ela, se primeiro não renunciasse, em ele e na sua filha, a todo o regimento que ela havia de haver no reino segundo nos tratos era contido. E ela, mudando de seu propósito e vontade, determinou de o fazer – nem valeu, segundo contam certos autores, o conselho que à Rainha deram alguns que disto souberam parte, dizendo que não podia em alhear [53] o regimento e senhorio que lhe ficara por morte delRei dom Fernando, indo contra a sua postumeira [54] vontade que pelo direito era havida como lei, ademais que tal renunciação era contra os tratos, nos quais não podia enader [55] nem minguar sem o consentimento dos prelados e povos do reino, como em eles se fazia menção, e ela disse-lhes [56] que não haviam por que pôr dúvida em tal coisa, que bem sabiam que elRei era senhor do reino de Portugal, e a Rainha, sua filha, e que em tal feito não se podia já mais fazer – e logo ao outro dia, quarta-feira, mandaram chamar um tabelião e foi feita a escritura em que renunciou a todo o direito do regimento que havia de haver no reino e o pôs em ele e em sua filha [57].

E na quinta-feira, pela manhã bem cedo, se veio a Rainha para o castelo e quitou a menagem a Gonçalo Vasques dAzevedo, que era daí alcaide-mor, e mandou chamar João Gomes dAbreu, cavaleiro, um dos honrados moradores do lugar, e disse-lhe que quando fosse a horas de meio-dia, fizesse abrir as portas de Leiria, que estavam fechadas e guardadas por gentes da vila, e viria elRei de Castela com a sua mulher e gentes pousar dentro da vila. João Gomes respondeu que fosse sua mercê de não querer que elRei de Castela nem as suas gentes entrassem no lugar, que melhor pousariam por esses mosteiros e fora, no arrabalde, onde lhes dariam mantimentos pelos seus dinheiros, do que lhes pondo a vila em poder e se emburilharem [58] todos.

A Rainha houve disto queixume e disse a João Gomes como sanhuda [59], E como? Não quereis vós que meus filhos entrem dentro da vila? Eu vos digo, se vós não quiserdes, que eu lhes darei entrada pela porta deste castelo, sairão por esta outra porta dentro da vila, e onde [60] eu tenho ordenado de eles irem pousar nas casas de Gonçalo Vasques dAzevedo, eles irão pousar nas vossas convosco! Respondeu então João Gomes e disse, Senhora, eu dizia isto por bem, entendendo-o para vosso serviço, mas pois que a vós assim não praz, eu farei tudo o que vós mandais.

E logo em esse dia depois de jantar [61] abriram as portas, e elRei, como comeu, veio-se à vila, e vinha em cima de um cavalo, e parte dos seus, de bestas [62], armados e lanças levantadas, todos adiante. E as ruas desde o castelo até a SantEstêvão, onde elRei havia de pousar, e dali até a alcáçova, todas primeiramente foram filhadas e postos muitos homens de armas a pé terra [63] em elas, e mandou a Rainha aos judeus que fossem receber seus filhos com as Touras [64] fora da vila, e eles fizeram-no assim.

E quando elRei chegou à porta do castelo que saía para o Chão da Feira, já ali estava a Rainha de besta [65], e tomou-a elRei pela rédea, e a Rainha sua filha trás ela, a qual levava o Infante de Navarra. E elRei ia armado dumas solhas e com um ramo de cidreira na mão, e entraram pela porta de Leiria e levaram todo o longo da rua até que chegaram às pousadas de Gonçalo Vasques dAzevedo, onde haviam de pousar, que eram junto com a igreja de SantEstêvão desse lugar, e ficou a Rainha dentro das pousadas com elRei.

E logo nesse dia lhe foi entregue o castelo e a alcáçova. E foi tirado aquele que o tinha por Gonçalo Vasques e posto nele Lopo Fernandez de Padilha, e na alcáçova puseram Garcia e Sancho de Vilhodre [66], dois irmãos, com oitenta lanças. E havia elRei sempre em seu Paço, de guarda de dia e de noite, cinquenta homens de armas.

73. DA MANEIRA QUE ELREI TEVE COM OS DESEMBARGADORES DA JUSTIÇA, E COMO MESCLOU AS SUAS ARMAS COM AS DE PORTUGAL.

Estando elRei assim em Santarém, que é uma das grandes e melhores vilas que há no reino de Portugal e a mais abastada de todos os mantimentos, vinham-lhe a cada dia grandes capitães com muitas gentes de seus reinos, e o Apousentador da Rainha, com outro delRei de Castela, repartiam bairro a cada um, segundo o que era [67], dentro da vila e pelo arrabalde de fora. E não escusavam a nenhum de pousarem com ele, salvo a Judiaria, em que não pousaram por azo de dom Davi Negro e dos judeus de grande estado aliados da Rainha. E tinham os castelhanos boa maneira, logo no começo, com quem pousavam e no comprar das viandas [68].

E estavam todos os desembargadores e oficiais da casa – do tempo delRei dom Fernando – com a Rainha em Santarém quando elRei de Castela chegou, que se vieram com ela quando partiu de Lisboa, assim como LourençEanes Fogaça, Chanceler-mor, e Gonçalo Peres, seu escrivão, o doutor Gil do Sem, João Gonçalves, Fernão Gonçalves e Lopo Estevens de Leiria, todos três licenciados em leis, Rodrigo Estevens de Lisboa, Gonçalo Peres, Prior dOurém, e GonçalEanes, ambos bacharéis em direito canónico, e estes e outros livravam [69] todos os feitos [70] de Portugal com grande deliberação e direito. E quando elRei de Castela chegou não quis desfazer o modo como estavam, mas pôs cada um de sua mão no ofício que tinha, e isso mesmo os escrivães e todos os outros, e fez seu procurador Gonçalo Martins, bacharel em degredos, e todos receberam dele mantimento para dois meses e em seu nome livravam os feitos, como aqueles que entendiam que já tinha o reino por seu. E andava Gil Eanes, Corregedor da Corte, e um alguazil delRei pela vila, que a regiam e ouviam alguns feitos entre os castelhanos e os portugueses.

ElRei de Castela, posto que antes se chamasse Rei de Castela, de Leão, de Portugal e do Algarve, ali começou de se nomear muito mais claramente por azo das sentenças e dos outros desembargos do reino, alçando pendões de suas armas com as quinas no cabo delas [71], como já tendes ouvido, e como elRei ali chegou, disse a LourençEanes Fogaça, Chanceler-mor que fora delRei dom Fernando, que lhe levasse os selos que tinha, assim chãos como pendentes, para os mandar desfazer e quebrar e mandar fazer outros, com as armas e sinais de Castela e as de Portugal mescladas com elas, dizendo-lhe que como fossem feitos logo lhos entregaria, porque não era seu desejo de haver outro Chanceler no reino senão ele.

LourençEanes cumpriu o seu mandado e entregou-lhe os selos com pouca vontade de os mais receber, nem ser seu Chanceler, e para ter azo de se partir a salvo, ele e Gonçalo Peres, seu escrivão, disse um dia a elRei de Castela, Senhor, eu e Gonçalo Peres, vosso escrivão da Chancelaria, não temos aqui as nossas mulheres, que eu tenho a minha em Lisboa e ele tem a sua em Évora, seja vossa mercê de nos dar licença para irmos por elas, assim pela sua segurança como para termos azo de vos melhor servir. A elRei prouve de tal requerimento, pensando que fosse como ele dizia, e eles foram-se para o Mestre, oferecendo-lhe o seu serviço, e ele mandou LourençEanes a Inglaterra, como tendes ouvido, e depois Gonçalo Peres à cidade do Porto, como adiante contaremos.

O mesclar das armas fez elRei por esta guisa, a redondeza do selo partiu de todo pelo meio, e na primeira metade estavam as armas direitas de Castela, e na outra metade as direitas de Portugal, convém a saber, a barra de longo com o meio da redondeza [72] era cercada de castelos, e dentro, cinco escudos com as quinas, e as letras que cercavam todo o selo arredor diziam, Johãnis Dei gratia Regis Castelle et Legionis et Portugallie. Seu ditado, nas cartas e em quaisquer outras escrituras, era este, Dom João, pela graça de Deus, Rei de Castela, de Leão e de Portugal, de Toledo, de Galiza e dos outros lugares que se costuma de nomear. E em tais selos e com tal ditado se chamou então, e depois por tempo [73].

E ordenou o concelho de Santarém de darem logo um serviço a elRei de Castela, e foram-lhe outorgadas pelos homens bons desse lugar trinta mil libras, as quais depois houve o Mestre, sendo Rei, daqueles que delas foram recebedores. E teve elRei conselho de fazer moeda em Santarém, e mandou lavrar uns reais de prata de lei de sete dinheiros, coroados e outras moedas de valor pequeno. E dizem que deu a Rainha dona Lionor a elRei de Castela muitas jóias das que ficaram delRei dom Fernando, e ele lhas agradeceu muito, e foram logo à primeira muito de acordo e bem amigos.

74. DOS FIDALGOS E CAVALEIROS QUE ESTAVAM COM ELREI EM SANTARÉM, E DO QUE AVEIO A GONÇALO VASQUES COM O SOLDO QUE MANDOU PAGAR AOS SEUS.

ElRei em Santarém, como dizemos, estavam aí, dos fidalgos do reino, estes senhores e capitães com ele, convém a saber, dom Henrique Manuel de Vilhena, filho de dom João Manuel, Conde de Seia, que tinha Sintra, dom PedrÁlvares Pereira, Prior do Hospital, o Conde dom João Afonso, irmão da Rainha dona Lionor, o Conde de Viana e Gonçalo Vasques dAzevedo, que tinha Torres Novas, Vasco Peres de Camões, que tinha Alenquer, João Gonçalves Teixeira, que tinha Óbidos, DiogÁlvares e Fernão Pereira, irmãos do dito Prior do Crato, Vasco Martins da Cunha e Martim Vasques, Gil Vasques e Vasco Martins, seus filhos, João Afonso Pimentel, João Rodrigues Porto Carreiro, Martim Gonçalves dAtaíde, Afonso Gomes da Silva e Fernão Gomes da Silva, Martim Afonso de Melo e Vasco Martins, seu irmão, e os filhos destes, Fernão Gonçalves de Sousa e Gonçalo Rodrigues de Sousa, e pelo reino, outros muitos e bons cavaleiros que tinham grandes e boas fortalezas com que obedeciam ao seu mandado.

E destes senhores e fidalgos que ali chegaram a Santarém, mandou elRei a alguns que se tornassem para os seus lugares, e outros ficaram em sua companha. Onde sabei que a todos os senhores e fidalgos que ali ficaram e aos que se tornaram para os castelos que lhe já tinham oferecido, a todos elRei desembargava soldo para certas lanças com que o houvessem de servir, entre os quais desembargou a Gonçalo Vasques dAzevedo soldo para cem lanças.

Gonçalo Vasques trazia grande casa e era acompanhado de muitos e bons escudeiros que com ele viviam, assim como RodriguEanes de Buarcos, Vasco Rodrigues Leitão, João Rodrigues da Mota e outros semelhantes de boa conta. E um dia foi ele ao Paço e deixou recado ao seu vedor de que desse o soldo a todos os seus, segundo já tinha ordenado, e este pôs três montes de dinheiros em cima de uma mesa, um de florins [74], outro de reais de prata e outro de moeda corrente, e quando requereu aos escudeiros que o tomassem [75], nenhum houve que os quisesse receber, mas tomavam os florins na mão, começavam de rir deles e tornavam-nos ao seu lugar. Gonçalo Vasques, a horas da ceia, tornou para a pousada, e quando viu os dinheiros estar daquela guisa não soube o que cuidar, e perguntou ao seu vedor porque os não dera como ele mandara. Sabei, disse ele, que a todos convidei com eles e não houve nenhum que os quisesse receber.

Gonçalo Vasques esteve um pouco quedo, suspeitando porque o faziam, e disse que guardassem dali os dinheiros e que pusessem a mesa, e então chamou-os todos adeparte e disse, Espantado sou de vós serdes todos homens a que eu tal desejo tenho, assim de acrescentar em vossas honras como de encaminhar os vossos feitos com elRei, meu Senhor, por onde quer eu possa, e não quererdes vós tomar o seu soldo para o haverdes de servir em minha companhia. Em verdade eu tinha de vós tal intenção [76], que não digo eu com elRei de Castela, que é um senhor que todos somos teúdos de servir, mas que ainda que me eu tornara mouro e me fora para Granada, para lá viver para sempre, vós vos tornaríeis mouros comigo e me serviríeis em quaisquer coisas que de minha honra fossem, e agora me parece que era enganado convosco, porque disto vejo muito o contrário, e pois que assim é, rogo-vos que me digais porque o fazeis.

E eles todos calando, respondeu Vasco Rodrigues e disse, Digo-vos, pois estes calam e nenhum não fala, que eu quero falar por mim e por eles. Sabei que nem eles nem eu, não temos vontade por nenhuma guisa de tomarmos soldo delRei de Castela, nem vosso para o haver de servir, e antes nos partiremos todos de vós do que havermos de tomar o seu soldo e sermos seus. Mas se vós quiserdes ter a tenção do Mestre e de Lisboa, digo-vos que não haveis mister de ouro nem prata, nem outro dinheiro que nos deis, mas todos de boa vontade despenderemos os corpos e vidas, e quanto temos, para vos servir e morrer convosco onde quer que vós fordes. E esta é a nossa final intenção, da qual já não temos de desviar, e se algum vos disser o contrário, sabei que vos mente e não lhe creiais nem fieis dele, nem de mim tampouco, posto que vo-lo diga.

Gonçalo Vasques quando isto ouviu ficou espantado, e disse pois que assim era, que ele não entendia de os perder nem forçar, mas que encaminharia de jeito a que isto não viesse mais a praça [77]. Então houve com elRei que se fosse para Torres Novas e ali estivesse para guarda do lugar, e assim se foi.

Eles, vendo que o seu desejo era de servir elRei e ter a sua intenção, partiram-se dele aos poucos e poucos, e foram-se a Buarcos para Álvoro Gonçalves, seu filho, que tinha a voz do Mestre, e meteram-se na frota do Porto, quando depois veio a Lisboa, como adiante diremos.

75. DOS LUGARES QUE TOMARAM VOZ POR CASTELA EM TODAS AS COMARCAS DO REINO.

Pois que dissemos parte dos senhores e fidalgos que se vieram para elRei de Castela, convém que digamos dos lugares que tomaram a sua voz e lhe obedeciam, para verdes como teve grande parte do reino ao seu mandar por todas as comarcas dele, não, porém, que os povos moradores dos lugares lhos dessem nem lhe obedecessem de seu grado, mas porque os alcaides e os melhores de cada um dos lugares lhos ofereciam, tomavam a sua voz e a faziam tomar aos pequenos pela força, assim como fez Lopo Gomes de Lira em Braga, que se chamava Meirinho por elRei de Castela, que por prisão que fez aos moradores do lugar e às pessoas eclesiásticas do cabido da , lhes fez que fizessem menagem ao Arcebispo de Santiago [78] em nome delRei de Castela, que tivessem a sua voz e lhe obedecessem como a seu senhor, porque o dito Lopo Gomes entrou na cidade contra a vontade do concelho e do cabido, e fez aí entrar o Arcebispo de Santiago e outras companhas [79] da Galiza com ele, depois, mandou lançar pregão pela cidade de que todos os moradores dela, assim clérigos como leigos, se fossem logo à claustra [80] da Sé para fazer menagem ao dito Rei de Castela e a sua mulher de que os houvessem por senhores e fizessem por eles a paz e a guerra, e àqueles que o não quisessem fazer, que os degradava do senhorio dos reinos de Portugal e que perdessem os bens que haviam. Além disto, eram subjugados pelo castelo que está sobre a dita cidade, de que era alcaide Vasco Lourenço, irmão do dito Lopo Gomes, dizendo-se-lhes que se não fizessem as ditas coisas que Lopo Gomes lhes mandava, seriam destruídos, e eles, todos com temor, lhas fizeram então como ele quis. E por esta guisa e outras semelhantes se davam os povos a elRei de Castela, mas não de vontade.

Onde cuidai que sendo soada a sua partida de Castela para vir a Portugal, uma voz de grande espanto, como dissemos, foi ouvida em todo o reino quando as gentes foram certificadas que elRei de Castela queria entrar nele, vendo que tal entrada não podia ser sem grande escândalo e discórdia, a qual punha os humanais entendimentos em opiniões de muitas guisas, em tanto que, posto que o amor da terra e a natural afeição constrangessem muitos fidalgos e alcaides de castelos a ter com Portugal antes que com Castela, outros porém havia aí tais que usando de cobiça misturada com intenção maliciosa, e uma parte deles com o temor e receio de cada um perder a sua honra, e depois para cobrar outra maior do que a que tinha, isto lhes fez de todo escolher o contrário, por tal modo que foi o reino diviso em si e partido em duas partes, e mui poucos lugares e fidalgos tomaram a voz do Mestre para o ajudar, e todos os outros se deram a elRei de Castela obedecendo ao seu mandado, assim que pelas comarcas do reino estavam por ele estas fortalezas, convém a saber: na Estremadura, Santarém, Torres Novas [81], Ourém [82], Leiria [83], Montemor-o-Velho [84], castelo da Feira [85], Penela [86], Óbidos [87], Torres Vedras [88], Alenquer [89], Sintra [90]; e Entre Tejo e Odiana, Arronches [91], Alegrete [92], Castel da Vide [93], o Crato, a Amieira [94], Monforte [95], Campo Maior [96], Olivença [97], Vila Viçosa [98], Portel [99], Moura [100], Noudal [101], Mértola [102], Almada [103]; e Entre Doiro e Minho, Lanhoso, Braga [104], Guimarães [105], Valença, Melgaço, Ponte de Lima [106], Vila Nova de Cerveira, Caminha, Viana [107], o castelo de Neiva [108]; em Trás-os-Montes, Bragança, Vinhais [109], Chaves [110], Monforte de Rio Livre, Montalegre, o Mogadoiro, Mirandela, Alfândega, Lamas de Orelhão, Vila Real de Panóias [111]; na Beira, Castel Rodrigo, Almeida, o Sabugal, Monsanto, Penamacor [112], a Guarda [113], Covilhã [114], Celorico, Linhares [115]. Estes cinquenta e quatro lugares, e outros mais que dizer não curamos, teve elRei ao seu mandar quando veio e antes que entrasse no reino, e posto que os ricos e poderosos, assim alcaides de castelos como outros fidalgos, tivessem voz por elRei de Castela, os povos, porém, todos em seus corações eram contra ele e contra a Rainha [116], em guisa que, assim como dissemos, se levantavam muitas uniões em alguns lugares e tomavam os castelos aos alcaides deles, alçando voz pelo Mestre dAvis, escrevendo-lhe que queriam ser seus e o ajudar com os corpos e haveres, assim como tomaram Évora a Álvoro Mendes dOliveira, Estremoz a Joane Mendes de Vasconcelos, Beja e outros lugares que ouvistes. E àquelas vilas que tinham voz por Castela mandava elRei gentes de armas quantas via que eram mister, de guisa a que os alcaides, com elas e com os seus criados e amigos, as pudessem defender como cumpria, que dos que moravam nos lugares não eram os alcaides muito seguros, por as coisas que viam acontecer. E das fortalezas que tinham voz por Castela saíam os alcaides portugueses a fazer grandes roubos e cavalgadas nos termos dos que tinham a parte do Mestre, prendendo, roubando e matando neles como se lho devessem por contrários merecimentos, assim que os que deviam ser seus defensores e os livrar das mãos dos inimigos, os matavam e perseguiam, usando contra eles de toda a crueldade. Ó que forte coisa e mortal guerra de ver, uns portugueses quererem destruir os outros! E aqueles que um mesmo ventre gerou e uma mesma terra deu criamento [117], desejarem de se matar de vontade e espargir o sangue de seus divedos e parentes!

 



[1] Fuenteguinaldo.

[2] Ao amanhecer.

[3] Quotidianamente.

[4] De que lado estava.

[5] Que o seguisse.

[6] Desagradou.

[7] Pero Ruiz Sarmiento.

[8] Que tratasse com ele para que lhe viesse falar.

[9] Não o assediaria.

[10] Tão-só, que apenas.

[11] Se acaso.

[12] Assediar o castelo.

[13] Se juntar a ele.

[15] É só então, em finais de Dezembro de 1383, inícios de Janeiro de 1384, quando os fidalgos da Beira se recusam a prestar-lhe homenagem como soberano pleno, que o Rei castelhano de modo implícito, de má vontade e com reserva mental reconhece pela primeira vez que a sogra algum direito teria à regência e ao senhorio de Portugal.

[16] Agasalho, recepção.

[17] Assinalam, apontam.

[18] Credenciais.

[19] Apressados, impacientes.

[20] Reflectir, ponderar com cuidado.

[21] Resolverem, decidirem.

[22] Ainda que.

[23] É tão-só um pouco de vento.

[24] No mês de Dezembro.

[25] Em que, no qual.

[26] E que se queixava a eles de tais coisas.

[27] Se abstivesse.

[28] Independentes.

[29] Opostas, discordes.

[30] E porque.

[31] Entretanto, nesta ocasião.

[32] Instantes.

[33] Que se desse pressa, que se apressasse.

[34] Seus parentes.

[35] Pressa.

[36] Indicam.

[37] Que tinham aliança com eles.

[38] Nomeadamente.

[39] De sorte que.

[40] E ainda muito menos.

[41] Almoçou.

[42] Aqueles que estavam com a Rainha Leonor Teles em Santarém.

[43] Alcaide de Óbidos.

[44] Vestimentas mais ricas.

[45] Vigia, espia.

[46] Directamente.

[47] Vigia a segui-lo.

[48] De surpresa, de emboscada.

[49] Mas logo pela tarde tinham vindo muitos. Muito provavelmente, as hostes de Velasco e de Sarmiento, que foram os primeiros a chegar ao Chão da Feira.

[50] Apeado, desmontado.

[51] De má vontade, constrangida.

[52] Diferentes.

[53] Não podia alienar.

[54] Última.

[55] Adir, aditar.

[56] Respondeu-lhes.

[57] Nestes termos formais, Leonor Teles nem sequer declarou renunciar à regência e senhorio do reino que tinha, ou havia, mas tão-só a um hipotético direito ao regimento do reino que havia de haver. E em Ayala, esta renúncia é relatada assim: «renunció el governamiento… que segund los tratos que fueron fechos… avia ella de tener…». A expressão «avia de tener», quer na Crónica de Pedro I de Castela, quer nas outras três Crónicas de Ayala, tem exactamente o mesmo significado da expressão «havia de haver» empregue por Fernão Lopes. Por outro lado, renunciando a todo o direito do regimento que haveria segundo o tratado, renunciava inclusive a considerar que tinha sido até essa data Regente.

[58] Embrulharem-se, coabitarem em confusão os da vila e os castelhanos.

[59] De maneira sanhuda.

[60] E em vez do que.

[61] Depois de almoço.

[62] Em montadas.

[63] Apeados.

[64] O Pentateuco hebraico.

[65] Numa montada.

[67] Segundo a sua importância social, o seu grau hierárquico.

[68] Alimentos, provisões.

[69] Decidiam, despachavam.

[70] Demandas jurídicas.

[71] Pelo meio da bandeira contra o cabo, isto é, no lado esquerdo ou segunda metade da bandeira.

[72] A barra circundante em toda essa metade.

[73] Por muito tempo.

[74] Moedas de ouro.

[75] Que tomassem o soldo.

[76] Opinião, juízo.

[77] Não viesse mais a discussão, ou a público.

[78] Juan García Manrique.

[79] Hostes.

[80] Claustro.

[81] Alcaide de Santarém e Torres Novas, Gonçalo Vasques de Azevedo.

[82] A vila estava em poder de homens de armas de João Afonso Telo, Conde de Barcelos. Ourém toma a voz do Mestre de Avis por volta de 10 de Junho de 1384. Ver capítulo 123.

[83] Alcaide, Garcia Rodrigues Taborda.

[85] Senhor da terra e do castelo da Feira, João Afonso Telo, Conde de Barcelos. Alcaide, Martim Correia.

[87] Alcaide, João Gonçalves Teixeira.

[88] Alcaide, Fernão Gonçalves de Meira.

[89] Alcaide, Vasco Peres de Camões.

[91] Em Abril de 1384, Arronches estava sob o domínio de uma guarnição castelhana. Logo após a batalha dos Atoleiros, a população chamou Nuno Álvares em sua ajuda e entregou-lhe a vila.

[92] Em Abril de 1384 a povoação encontrava-se nas mãos dos seus habitantes, que também a entregam a Nuno Álvares logo após os Atoleiros.

[94] O Crato e a Amieira pertenciam ao Priorado do Crato.

[95] A 6 de Abril de 1384, e provavelmente já antes, estava nas mãos de Martim Eanes de Barbudo, Comendador de Pedroso da Ordem de Avis.

[96] Alcaide, Paio Rodrigues Marinho.

[97] Alcaide, Pêro Rodrigues da Fonseca.

[98] Alcaide, Vasco Porcalho.

[100] Alcaide, Álvaro Gonçalves de Moura.

[101] Noudar era uma fortaleza da Ordem de Avis.

[102] Alcaide, Fernão de Antas.

[103] Almada, que não tinha alcaide, a 1 de Janeiro de 1384 já seguia a voz do Mestre de Avis. Ver capítulo 58.

[104] Alcaide do castelo, Vasco Lourenço de Lira, irmão de Lopo Gomes.

[107] É aí alcaide, na Primavera de 1385, Vasco Lourenço de Lira.

[108] O alcaide, na Primavera de 1385, é um genro de Lopo Gomes.

[109] Alcaide de Bragança e Vinhais, João Afonso Pimentel.

[112] Alcaide de Monsanto e Penamacor, Fernão Gomes da Silva.

[113] A cidade foi entregue pelo seu Bispo.

[115] Alcaide de Celorico da Beira e Linhares, Martim Afonso de Melo.

[116] Rainha Leonor Teles.

[117] Sustento, criação.