XI - Leonor Teles é presa e desterrada

A divisão em grandes capítulos numerada em romano é apócrifa, tal como os respectivos títulos, e foi introduzida pelo «O Espaço da História».

 

76. PORQUE SE GEROU O DESPRAZIMENTO ENTRE A RAINHA DONA LIONOR E ELREI DE CASTELA.

 

Se dizem que a malícia bebe grande parte da sua peçonha, bem se pode isto dizer da Rainha dona Lionor, porque pousando ela naquelas casas com elRei seu genro, como dissemos, não foram precisos muitos dias para que à Rainha começasse a desprazer da conversação delRei, e a ele igualmente da sua, e o desprazimento que a Rainha começou a haver dele contam que foi principalmente por esta guisa.

Em Castela vagou o Arrabiado mor dos Judeus nesta sazão em que a Rainha mandou o recado a Coimbra que ouvistes; vieram-no pedir a elRei ali em Santarém onde estava, e a Rainha dona Lionor, como o soube, foi-lho pedir para dom Yuda, Tesoureiro que fora delRei dom Fernando, e muito dela seu privado, e ele se escusou de lho outorgar, e deu-o à Rainha dona Beatriz, sua mulher, para dom Davi Negro, privado que também fora delRei dom Fernando, Judeu muito honrado e rico que começou a servi-la quando a Rainha chegou a Santarém. A Rainha dona Lionor, como era mulher de grande coração e que toda a sua vontade queria ver cumprida, vendo a maneira que ela tivera com elRei de pôr nele o regimento do reino, além de outras coisas, e que agora ele não lhe quisera dar aquele Arrabiado, que era uma coisa tão pequena e a primeira que ela lhe pedia, entendeu que ao diante poucas coisas havia de conseguir com ele, mormente vendo como eram contrárias as suas falas e condições.

E com a grande mágoa que houve delRei, dizem que disse a alguns daqueles que com ela foram de Lisboa: Vede que senhor este! E que mercês esperaremos vós e eu dele, quando uma coisa tão pequena que lhe pedi me não quis outorgar? Ora vede então que mercê há-de fazer a mim ou a vós? Juro-vos em verdade, que se um conselho me quisésseis crer, que vós faríeis bem de vos ir todos para o Mestre, pois é vosso natural e senhor que vo-las (as mercês) fará melhor; que eu mesmo que vo-las queira fazer já não tenho azo como, e cada vez o terei pior, segundo a maneira que eu nisto entendo. E faço-vos certos de que se eu me daqui pudesse partir como vós, com minha honra, que nunca aqui mais estivesse tão-somente um dia! E assim o fizeram depois os demais deles, que se foram todos para o Mestre.

As razões que também contam por que a elRei começou de desprazer dos modos da Rainha dizem que foi porque a viu muito solta no falar, tendo jeitos nas suas falas como não cumpria a mulher viúva, mormente havendo tão pouco que elRei dom Fernando morrera e estando ela toda coberta de dó, e dizendo-lho elRei à parte entre si e ela, a sua índole que em tal conselho muito não se outorgava lhes fazia que no fim das razões nunca se partiam muito de acordo.

 

77. COMO ELREI PARTIU DE SANTARÉM A CAMINHO DE COIMBRA COM INTENÇÃO DE A COBRAR.

 

Passando-se assim estas coisas, a Rainha começou a arrepender-se muitíssimo do que começado tinha, tanto da vinda ao reino que pedira a elRei como da renunciação ao regimento que havia posto nele. E abandonando o pensamento que primeiro havia cuidado, dizem que encobertamente mandou cartas suas a alguns dos lugares que elRei pretendia cobrar, para que ainda que ele lá fosse, e ela com ele em sua companhia, que lhos não dessem por muitas razões que ela dissesse ou que por outrem lhes mandasse dizer, entre os quais lugares um deles foi a cidade de Coimbra.

Nisto veio a resposta ao primeiro recado que ela mandara ao Conde dom Gonçalo e a Gonçalo Mendes, segundo ouvistes, dizendo o Conde que lhe prazia muito do que lhe escrevera mas que isto não se podia fazer de nenhuma guisa a menos que elRei fosse lá com as suas forças, mostrando que o ia cercar para haver a cidade, que doutro modo duvidava de o consentirem aqueles que com ele estavam, e que ela sempre fosse em sua companhia, não sucedesse aí outra coisa. Visto este recado, prouve a elRei muito com ele, e ordenou de se partir logo com a sua hoste, e ambas as Rainhas consigo, e foi esse dia dormir a Torres Novas. E elRei com a sua mulher pousava no arrabalde, e noutras pousadas a Rainha dona Lionor, a qual foi aquela noite guardada por certos homens de armas castelhanos, e ela no outro dia, quando o soube, disse para os que iam em sua companha:

Como? Guardada sou eu de gente de Castelãos? Quanto agora entendo eu que vou presa. ElRei, sabendo-o, disse que o fazia pelo melhor e para sua segurança, e outras tais razões com que se escusou.

Dali partiu e passou por Tomar e pelos outros lugares que são no caminho, onde achou muito mau acolhimento e as portas das vilas cerradas, e dizia elRei aos seus, à parte, que bem lhe dava a percepção a ele, antes que partisse de Santarém, de que tal recebimento lhe haviam de fazer naqueles lugares.

 

78. COMO ELREI CHEGOU A COIMBRA, E DALGUMAS COISAS QUE AÍ ACONTECERAM.

 

Chegou elRei a Coimbra e muitas gentes com ele, e pousou nos Paços de Santa Clara, junto com a ponte da cidade, e o Conde de Mayorgas dentro do Mosteiro, e o Conde dom Pedro em Santa Ana, e com este pousavam Afonso Anriquez e outro Afonso Anriquez o moço, seus irmãos. E o Conde dom João Afonso de Barcelos, e João Rodrigues Porto Carreiro, e João Afonso Cabeça de Vaca pousavam em São Francisco, e dom João, Conde de Viana, logo aí à beira numa tenda, e Fernão Gomes da Silva e alguns cavaleiros em São Martinho, couto do Bispo, e outros em São Jorge e nas almuinhas e por outros lugares dessa comarca.

E depois que foram todos instalados não fizeram nenhum mal nem querença de combater, antes entravam a cada dia na cidade o Conde de Mayorgas e outros, para falar com o Conde dom Gonçalo e com Gonçalo Mendes de Vasconcelos, e comiam e bebiam com eles, e por intermédio deles elRei lhes mandou dizer e rogar que lhes prouvesse de lhe dar aquela cidade e tomar a sua voz, e que lhes daria soldo para quantos com eles estavam, prometendo a uns e a outros grandes e largas mercês, e assinalando, além disto, muitas razões por que o deviam de fazer, e o Conde deu em resposta que não dariam a cidade senão a de quem ela fosse de direito.

ElRei, vendo as suas razões, mandou-lhe dizer que tivesse por bem de lha dar e que o faria senhor de toda a Estremadura até ao Porto, ou que lhe daria vilas e lugares no reino de Castela onde lhe mais prouvesse e de que ele fosse contente, e que do seu condado não fizesse conta, pois ele o acrescentaria e poria em muito maior estado do que agora era, afincando muito o Conde para que o fizesse aqueles que lhe levavam o recado, mas ele dava sempre em resposta a que já antes havia dado. Então lhe mandou elRei rogar, pois que lha dar não queria, e ele tinha o regimento do reino, que a mantivesse assim sem lhe mover a partir dela guerra.

O Conde respondeu que se sua irmã, sem o seu conselho nem daqueles com que o devera de falar, fizera o que tinha feito, que lá se arranjasse que ele com aquilo não tinha que ver, e que a resposta que já havia dado entendia de dar quantas vezes nisto lhe falassem. Então um dia o Conde de Viana passou o rio contra Vila Franca e chegaram a um lugar que chamam Arregaça, e saiu da vila Martim Correia com alguns seus e uns poucos de peões e quatro besteiros, e houve ali uma pequena escaramuça em que mataram seis peões dos da vila e prenderam três.

E em se recolhendo o dito Correia e os outros com ele, foi atrás deles um Escudeiro, criado delRei, tão desatentamente que se meteu e ao seu cavalo por uma vinha, e ali chegaram peões da vila e mataram-no, e a este viu elRei matar e desvestir das armas. Então os do arraial, quando isto viram, mataram dois prisioneiros que tinham presos.

Depois saiu o Conde de Mayorgas e Pero Diaz de Quaderma, e saiu também o Conde dom Gonçalo e Gonçalo Mendes e outros, e prenderam um escudeiro castelhano que chamavam Garcia de Villa Odre, e logo no outro dia o enviaram a elRei, com todas as suas armas, e dali em diante não se fez mais, salvo que às vezes se lançavam setas duma parte à outra, e tirou Nuno Fernandes com uma besta de torno e deu a um muito bom cavaleiro que chamavam João Afonso de Bolanho, e matou-o.

 

79. DAS RAZÕES QUE DONA BEATRIZ DE CASTRO FALOU COM AFONSO ANRIQUEZ E DO QUE LHE ELE RESPONDEU.

 

Contando esta estória cumpridamente, para virdes em conhecimento de qual foi a razão porque elRei de Castela mandou a Rainha para fora deste reino, e se teve justa razão de o fazer ou se, pelo contrário, não a teve, vejamos o que escreve na sua crónica um autor que mais largamente do que qualquer outro falou de como tudo se seguiu.

Onde sabei, segundo ele põe, que estando elRei assim por alguns dias, aguardando se mudariam as suas vontades o Conde dom Gonçalo ou Gonçalo Mendes, que a Rainha, desamparada da sua primeira esperança e posta em amargosas e tristes cuidações, mostrava de si turvado semblante, de guisa que qualquer um lhe podia entender seus nojosos pensamentos. E vendo isto dona Beatriz, filha do Conde dom Álvoro Peres de Castro, que andava com a Rainha de Castela, falando um dia em seus amores com Afonso Anriquez, irmão do Conde dom Pedro e primo delRei, que era muito seu namorado, veio-lhe a dizer deste modo:

Vós vedes bem como a Rainha dona Lionor, que me criou e me deu à sua filha para acrescentar em mim, é posta em tão grande coita (desgraça) como todos vemos, e espera de o ser muito mais, segundo a mim parece, porque as coisas não se guisam à vontade delRei nem da sua, pela qual razão estão postos em maior desacordo do que nenhum cuida (do que alguém julga). Ora, pois que vós dizeis que me quereis tamanho bem que de boamente casaríeis comigo, eu vos quero descobrir uma coisa que tenho cuidada, e se vós fôsseis homem que pudésseis postar com o Conde vosso irmão nisto que eu trago cuidado, eu faria de muito boamente a vosso talante em toda a coisa que me vós requerêsseis, e então seria nosso casamento muito melhor e muito mais com grande nossa honra.

Não há coisa, disse ele, que me vós requeirais e que eu por vós possa fazer, e meu irmão por minha honra, que nós a não façamos muito de grado, e dizei o que vos prouver.

Feitas então suas juras e prometimentos disto ser muito guardado em segredo, começou ela de razoar e disse: bem vedes como a fazenda da Rainha que me criou vai tanto para mal, e muito em contrário do que nós todos pensávamos, e se ela não é fora do poder delRei de Castela nunca poderá ser que seu feito venha senão a muita desonra. E por isso se o Conde vosso irmão, que é homem de grande estado, e que me parece que tem com ela bom jeito, pudesse azar por alguma guisa que ela fosse fora de seu poder e posta dentro da vila com o conde seu irmão, e nós outrossim com ela, então ela seria tornada a toda a sua honra, e nós mais honradamente casados. E ainda vos digo mais, que se vosso irmão pudesse fazer isto e ela fosse posta em seu livre poder, que não era maravilha de a Rainha depois casar com ele e haverem ambos o regimento desta terra, pois ela tem tais irmãos e tantos parentes e criados que havia por força de se assenhorear do reino, e ter o regimento dele como antes tinha.

Quando Afonso Anriquez ouviu estas razões, e outras muitas que sobre tal feito falaram, pareceram-lhe tais e tão boas que logo consentiu em sua vontade de se trabalhar muito para tal coisa ser posta em obra, e disse que ele o falaria logo com seu irmão, e ela que o falasse com a Rainha.

 

80. DAS RAZÕES QUE A RAINHA HOUVE COM O CONDE DOM GONÇALO SEU IRMÃO.

 

Falou dona Beatriz disto com a Rainha, e Afonso Anriquez com seu irmão, e à Rainha prouve muito de tal conselho e ao Conde dom Pedro não menos, e, falando em seus feitos sobre tal coisa, acordaram de o mandar dizer por Afonso Anriquez ao Conde dom Gonçalo, o qual quando soube foi muito ledo de isto se pôr em obra.

E foram-lhe essa noite falar à vila o Conde e seu irmão, os dois sós, e contaram-lhe tudo o que nisto se queria fazer, e o Conde disse que lho agradecia muito e que, se o pusesse em obra, nele ganharia um bom amigo para fazer qualquer coisa que em sua honra realizar pudesse, e que ele os aguardaria com as suas gentes, que para isto estariam prestes na noite que se combinasse. E para tal se fazer mais descansadamente e evitar toda a suspeita, vinham alguns à salva fé da parte do Conde falar com a Rainha e igualmente com o Conde dom Pedro, fazendo mostrança e dando a entender a elRei que tudo se fazia para seu serviço e para cedo cobrar aquela cidade.

Depois decidiu a Rainha com elRei que era bem de falar a seu irmão em praça, para ver se o poderia demover por suas falas e encaminhar a que lhe entregasse o lugar, pois que por falas de outrem o não podia postar com ele. ElRei disse que era bem feito, porém, embora não soubesse do que se tratava entre eles, não se garantiu que isto não fosse arte, e mandou fazer um palanque na ponte de maneira a que não a pudesse o irmão tomar enquanto esta fala houvesse entre eles.

E quando veio o dia da fala, tomou o Conde dom Pedro a Rainha pelo braço e iam até vinte com ela, e o Conde estava já na ponte, e três ou quatro com ele. E como a Rainha chegou, ele fez-lhe sua reverência e tomou-lhe a mão e beijou-a, e ela disse então: Mão beije homem que queria ver cortada.

Senhora, disse ele, verdade é, mas não é ela a vossa.

Pois se ela a minha não é, disse ela, porque não dais vós esta cidade a elRei meu filho, como vos eu mando? Maravilhada sou de vós muito! Saberdes bem a honra em que vos eu pus, o grande acrescentamento que em vós hei feito, e como vós não meteríeis o pé neste lugar se eu não fora, e agora por minha honra não o quereis dar a quem eu vos mando e rogo.

Verdade, disse ele, é o que vós dizeis, e eu logo a darei a vós de muito boa mente se vós cá quiserdes vir.

Eu presa sou, disse ela, e não posso lá ir.

E eu, disse ele, porque vos vejo presa e posta em poder alheio, portanto me parece que faria grande maldade em a dar a quem vos prendeu, e pois que vós fizestes o que vos prouve, sem conselho meu nem daqueles com que o deveríeis de falar, avinde-vos lá com ele.

Bem posso dizer, disse ela, que desamparada sou de vós e de todos os meus parentes a quem eu fiz muitas mercês e muito bem.

Aqueles que vinham com a Rainha começaram também a dizer ao Conde que lhes parecia que fazia mal em ver a sua irmã daquela guisa, posta em grande desavença com elRei por azo daquele lugar, e não lho querer entregar, ademais que elRei lhe faria em troca muitas mercês, e que eles ficariam por fiadores disto.

O que eu lhe farei, disse o Conde, é isto: se elRei, com cem lanças, e ela quiserem vir comer comigo dentro desta vila, eu lhes darei muito bem de jantar.

ElRei, disse ela, não faria tal coisa e isso são palavras de bom mercado.

Pois se vós o fazer não quereis, disse ele, eu não sei mais que vos faça. Então se puseram todos afora, e eles falaram ambos de tal guisa que nenhum pode ouvir nem entender coisa que algum deles dissesse.

 

81. DAS FALAS QUE SE TRATAVAM ENTRE O CONDE DOM GONÇALO IRMÃO DA RAINHA E O CONDE DOM PEDRO.

 

A Rainha, depois das falas, fez entender a elRei que ela tinha esperança de que ele cobrasse muito cedo a cidade, não obstante as razões que com seu irmão houvera, por outras coisas que depois com ele falara, mas dizem que tudo isto era para entretanto se proporcionar tempo azado a pôr-se em obra aquilo que ela e o Conde contra elRei tinham planeado, e o plano era o seguinte, segundo escreve aquele autor:

ElRei havia de ser morto uma noite pelo Conde dom Pedro e por certos indivíduos da sua parte, e lançar-se o Conde com todos os seus dentro da vila, e a Rainha com ele. E que ele logo tomaria voz de se chamar Rei de Portugal, e ela Rainha, assim como era, casando primeiramente os dois, e que desta guisa ficaria ela senhora do reino pela ordenança que era nos tratos, pois renunciara a ele como não devia, não o podendo fazer por direito, e que dali trataria com o Mestre e encaminharia todos os seus feitos.

Mas o Conde dom Gonçalo não sabia da morte delRei nem do casamento da irmã com o Conde, e que se havia de chamar Rei, porque este quando em tal feito lhe falou mais não lhe descobriu da sua fazenda salvo que se lançaria com a Rainha dentro da vila para a tirar do poder delRei de Castela, mostrando-lhe que era descontente delRei pelo grande lugar e privança que dava a Pero Fernandez Valasco. E o Conde dom Pedro entendia que, com os muitos parentes que tinha, ademais das gentes delRei de Castela que ficassem e que se chegariam a ele, bem poderia levar a sua tenção adiante. Mormente que a Rainha bem o animava, dizendo-lhe que com os parentes e criados dela, e também com os delRei dom Fernando que pelo reino tinham muitas fortalezas e logo lhas dariam, e não a elRei de Castela, para ficar o reino isento sobre si (independente), eles os dois poderiam acabar quanto quisessem.

Agora sabei que o principal embaixador destes feitos, que levava recado à Rainha e ao Conde dom Pedro da parte do Conde dom Gonçalo e igualmente lhe trazia a resposta, era um Frade de são Francisco, mas ele não sabia da parte da morte delRei nem das outras coisas que ao Conde dom Gonçalo não foram descobertas. E quando o Frade ia falar ao Conde sobre este seu segredo e da Rainha, ia-se logo o Conde dom Pedro a elRei dizer-lhe como aquele Frade viera a ele e como lhe falara sobre a entrega da cidade, e a razão por que o assunto se detinha e como tudo faziam pelo melhor, e elRei, muito ledo com estas razões, cada dia esperava de a cobrar.

Ora assim foi que este Frade, que andava nesta embaixada, era muito amigo e conhecido daquele Judeu dom Davi Negro a quem elRei dera o Arrabiado de Castela que antes dissemos. E receando que, na revolta que se havia de fazer ao lançar-se o Conde com a Rainha dentro da vila, recebessem algum dano este Judeu e os filhos pequenos que tinha consigo, cuidou de lhe fazer saber que se partisse do arraial e se viesse para a cidade, e que ele buscaria caminho e azo de como o pôr a salvo com sua honra, e isto lhe fez saber mui escusamente por um escrito, e que esta vinda para a cidade fosse sempre antes dum certo dia que logo lhe indicou.

O Judeu, quando viu o escrito, ficou tão espantado que mais não podia ser, vendo quão contrário se mostrava tal recado à esperança que elRei e quantos havia no arraial tinham. E não lhe sossegando o coração, trabalhou-se muito e fez de tal guisa que o Frade lhe veio falar encobertamente, como seu especial amigo que era, e o Judeu lhe perguntou que escrito era aquele que lhe mandara, e ele respondeu que porquanto poderia suceder, naquele dia em que diziam que a cidade se havia de dar, que se fizesse uma revolta que seria em dano dos do arraial e em que ele se arriscava a receber algum cajom (sofrer algum mal), por tal razão lho fizera saber, e isto lhe dizia o Frade por se escusar a mais lhe descobrir. O Judeu, que era sisudo, bem entendeu quanto segredo andava nisto feito, e tanto ele o afincou por força da amizade, dizendo que lhe descobriria outras coisas maiores da parte do arraial, que o Frade lhe revelou em grande segredo como uma certa noite ao serão, depois que o Conde lhes enviasse dizer que era prestes, haviam de repicar na vila um sino e fazer mostrança de que saía o Conde dom Gonçalo com gentes cá fora, e que o Conde dom Pedro, que para isto estaria prestes, havia de mandar dar à trombeta e mostrar que saía ao encontro do Conde para lhe contradizer tal vinda, e que nesta ida em que o Conde assim fosse havia de levar a Rainha consigo, e mostrando o Conde dom Gonçalo que lhe fugia, havia o Conde dom Pedro de ir atrás dele, aparentando que o vencia, e entrar dentro da vila, lançando-se aí com seus irmãos e todos os seus e a Rainha, e que esta era a entrega da cidade que se haveria de dar, e não doutra guisa. Mas não lhe soube dizer como o Conde dom Gonçalo e o Conde dom Pedro, logo como isto fosse feito, haviam de tornar com todos os seus e atacar de repente o arraial, e tomar então a Rainha, se antes o Conde a não tivesse podido levar logo consigo, e matarem elRei e aqueles outros que tinham decidido.

O Frade, depois que sobre isto falaram quanto cumpria, pôs este segredo em grande puridade ao Judeu (pediu-lhe sigilo), prometendo-lhe este de o guardar e que trataria de partir do arraial antes do tal dia, e despediram-se um do outro e ficaram muito mais amigos.

 

82. COMO FOI SABIDO O QUE O CONDE DOM PEDRO QUERIA FAZER, E COMO FUGIU E SE FOI AO PORTO.

 

O Judeu, que não via a hora em que esta coisa descobrisse a elRei, foi-lhe à pressa logo contar tudo o que lhe sucedera com o Frade; elRei quando o ouviu ficou muito espantado, e não podia crer nisto que o Judeu lhe dizia, ainda que ele muito afirmasse que era assim como lhe contava. E de elRei não o crer não era maravilha, pois que o Conde era seu primo coirmão, filho do Mestre dom Fradarique, irmão delRei dom Henrique, pai deste Rei dom João.

Então chamou elRei a Rainha e contou-lhe tudo o que dissera o Judeu, e ela creu logo nisto mais ligeiramente, e disse então para ele: Eu vos digo, Senhor, que sempre me receei deste homem pela grande afeição que lhe vi ter com minha mãe, ainda que nenhuma coisa vos dissesse.

E quando veio aquele dia em que isto se devia fazer, chamou elRei o Conde de Mayorgas e descobriu-lhe tudo o que o Judeu lhe dissera, e disse mais:

Avisai hoje todos os vossos em segredo que estejam armados e prestes à noite, e vós com eles, e quando o Conde dom Pedro fizer a finta que sai contra os da vila, que vós e vossos comeceis de bradar: Traição! Traição! Do Conde dom Pedro! Então prendei-o a ele e aos seus, quantos mais puderdes, ou matai-os, se à prisão não se quiserem dar.

E disto mesmo falou com um cavaleiro para que nessa noite pusesse tal guarda na Rainha que ela não pudesse ser tomada nem lançar-se dentro da vila.

A guarda daquela noite era do Conde dom Pedro, e ele trabalhou de correger a sua fazenda (negócios) o melhor que pôde para acabar o que tinha ordenado (planeado), e porque a coisa era muito pesada e bem duvidosa, pôs ele tão grande tardança (demora) em vir ao Paço que a outra guarda se queria ir para a pousada (retirar para os alojamentos) e ficava elRei sem guarda nenhuma.

E o Conde de Mayorgas disse a elRei que lhe parecia que era bem de virem cinquenta lanças das suas para ele, e não ficar o Paço a tais horas sem guarda nenhuma, e elRei disse que isto lhe prazia, e foram logo muito asinha prestes. Nisto um Escudeiro daqueles com que o Conde falara do seu segredo, que andava pelo Paço olhando o que faziam, quando viu aquelas gentes vir daquela maneira suspeitou que o segredo do Conde era descoberto, e foi-se a ele muito à pressa e disse: Que é isto, Senhor, que estais fazendo?Como? Disse ele. – Sabei por certo, disse o Escudeiro, que gentes do Conde de Mayorgas são já no Paço, e estão aí todos armados em maneira de guarda.

O Conde quando isto ouviu sentiu que era descoberto, e ficou tão fora de si que mais não soube que fazer, e ele e os irmãos, e dos seus quantos puderam, pegaram à pressa nas melhores coisas que tinham e foram-se pela ponte. E quando o Conde dom Gonçalo soube que ele ia daquela guisa e não levava a sua irmã maravilhou-se muito disso, e perguntou-lhe como é que vinha assim, e ele disse que fora descoberto e que fugia com medo que tinha de elRei o mandar matar.

O Conde houve disto não boa suspeita, cuidando que era fala e não verdade, e não o quis receber na vila, e mais disse que, pois que assim era, se fosse alojar ao arrabalde, e ele foi-se a Santa Cruz e pousou ali. ElRei, que não dormia e estava armado na sua câmara aguardando o sinal que haviam de dar na vila, quando viu que se prolongava a hora e soube que o Conde era já fugido, entendeu que fora informado por alguém do que a ele lhe fora revelado, e mandou logo nessa noite prender dom Yuda, Judeu grande privado da Rainha, e Maria Peres, sua Camareira, que deste feito pensou que sabiam parte.

E não pôde elRei saber logo se o Conde era dentro da vila, se fora, e quando soube que era no arrabalde mandou mil lanças passar pelo vau para o apanharem, e o Conde dom Gonçalo soube-o e mandou-lhe dizer que se pusesse a salvo, e ele foi-se para o Porto a tão grande pressa que mais ser não podia. E quando ali chegou, e contou o que lhe sucedera, receberam-no no lugar mas não se fiando bem dele, cuidando que andava com falsura, porque ninguém que daquela tramóia não soubesse outra coisa não podia pensar senão que por azo delRei de Castela, e com o seu consentimento, se partira da beira dele para tomar algum lugar.

E uns diziam que o matassem, outros que o deixassem estar; então houveram conselho de o guardarem à vista, sem prisão nenhuma, até que fizessem saber ao Mestre como ali chegara, e este dissesse o que mandava fazer dele.

 

83. DAS RAZÕES QUE ELREI E A RAINHA DONA LEONOR HOUVERAM SOBRE ESTE FEITO.

 

A elRei parecia longe a manhã para saber a verdade e certidão deste feito, e logo que o dia veio e ouviu missa bem cedo mandou trazer à câmara dom Yuda e a Camareira, não estando aí outrem salvo elRei e a Rainha sua mulher, e o Infante de Navarra (futuro rei Carlos III de Navarra), e dom Davi que descobrira a puridade (o segredo), e um Escrivão que havia de escrever; e quando vieram, mandou elRei que os despissem e metessem a tormento. O Judeu disse que não havia por que o desonrar, pois que ele diria a verdade sobre aquele feito, e então começou a dizer como a Rainha escrevera a todos os alcaides dos castelos por onde passaram que os não dessem a elRei, e como todas as falas que se tinham feito até àquele dia com o Conde dom Gonçalo eram para se lançar o Conde dom Pedro mais a Rainha dentro da cidade, e como o Conde se havia de chamar Rei, matando-o primeiro, e todas as outras coisas que dissemos, e daquela guisou o confessou Maria Peres, e foi tudo escrito e ratificado por eles.

E elRei lhes perguntou se o diriam assim perante a Rainha, e eles disseram que sim. Então mandou elRei pela Rainha, e trazia-a pelo braço aquele Cavaleiro a que elRei encomendara entretanto que a vigiasse, e ela, não embargando que viesse como presa, vinha bem sem medo nem mudança que mostrasse, como mulher de grande coração, e entrou ela só na câmara, e mais ninguém, e quando viu o Judeu que descobrira o segredo, disse contra ele esforçadamente: Aqui estais vós, dom David! E vós me fazeis aqui vir!Mais razão é, disse elRei, que seja ele aqui, que me deu a vida, do que quem me tinha abastecida a morte.

Então disse elRei ao Escrivão que lesse à Rainha tudo o que o Judeu dissera contra ela. E ela quando ouviu o que ele confessara disse contra ele, queixosamente: Ó perro cão traidor! E tu disseste aquilo de mim?Eu, disse ele, disse e digo que assim é verdade e que assim se passou de facto.

Mentes, disse ela, como perro traidor! E, se assim passou de facto, tu me aconselhaste! – E em começando de razoar sobre isto, disse a Rainha dona Beatriz: Ó mãe! Senhora! Em um ano me quiseras então ver viúva e órfã e deserdada?

Ora, disse elRei, aqui não cumpre mais razões. Eu matar não vos quero, por honra de vossa filha, posto que mo vós bem merecido tenhais, nem me cumpre andardes mais em minha companhia, nem eu na vossa, mas mandar-vos-ei para um honrado Mosteiro de Castela onde já estiveram Rainhas viúvas e filhas de Reis, e ali vos mandarei dar honradamente mantimento para que bem possais viver.

E ela sem medo e receio nenhum respondeu a elRei e disse: Isso fazei vós a alguma irmã, se a tiverdes, que a metei por freira nesse Mosteiro; que vós a mim não haveis de fazer freira, nem nunca vosso olho o há-de ver. Em verdade este é bom galardão que vós me dais! Deixei o regimento que no reino tinha e fiz-vos haver a maior parte de Portugal, e agora, a dito de um perro que com medo dirá que Deus não é Deus, assacais-me que raivei por me não terdes as coisas que me prometestes e sobre que comungastes comigo o Corpo de Deus em Santarém. Digo-vos, quanto a isto, que bem podem dizer que quem o seu cão quer matar, raiva lhe põe nome.

ElRei, não curando do que ela dizia, mandou levar a Camareira presa e ao Judeu perdoou, a rogo de dom Davi, e por então não se fez mais.

 

84. COMO A RAINHA DONA LIONOR FOI LEVADA PARA CASTELA.

 

Pôs elRei este feito em conselho com aqueles com que o devia de falar, dizendo que lhe parecia ser de razão e aguisado prender a Rainha sua sogra e mandá-la para Castela, para algum Mosteiro, e não consentir que estivesse mais em Portugal devido às coisas que haviam acontecido.

E tais aí houve do Conselho que disseram que era bem o que elRei dizia, e que assim o mandasse pôr em obra, dizendo que se a Rainha estivesse mais tempo com ele no reino mandaria os seus recados aos fidalgos que tinham as fortalezas para que lhas não dessem nem se viessem para ele, a qual era coisa muito em seu desserviço e grandemente avessa ao que começado tinha. Outros diziam que não era bem elRei prender a Rainha sua sogra, nem fazer-lhe aquilo que dizia, porquanto ela deixara o governamento do reino que houvera de ter segundo nos tratos era estabelecido e o pusera nele, e mais que lhe dera a vila de Santarém e outros castelos, como todos bem sabiam, e sobretudo por ser mãe da Rainha, sua mulher, e dona tão honrada como era, e que lhes não parecia ser de razão nem coisa para se fazer de a elRei mandar daquela guisa. E destas contrárias razões ateve-se elRei ao primeiro conselho, que era bem de a prender e levarem a Castela, e foi logo entregue a Diego Lopes dEstunhega.

E partiu elRei de Coimbra e veio-se a Santarém, e dali encaminharam com ela para Castela, para a pôr no Mosteiro de Outerdesilhas. E indo ela pelo caminho escreveu muito escusamente suas cartas a MartinhAnes da Barvuda e a Gonçalo Anes de Castelo de Vide, em que lhes rogava afincadamente, recontando muitas razões porque o deviam de fazer, que se fizessem prestes para a tomar no caminho àqueles que daquela guisa a levavam, e foi tal a sua sina que as cartas chegaram tão tarde que eles não tiveram nenhum espaço para pôr em obra o seu rogo, e assim foi levada para Castela àquele Mosteiro.

Maria Peres foi metida a tormento para confessar onde a Rainha pusera algum tesouro de ouro e prata e outras jóias, e dizem que em Santarém confessou que estavam muitas coisas em casa dum homem bom do lugar, de que a Rainha muito fiava, e que houve elRei grande parte delas.

 

85. DO RECADO QUE OS DE ALENQUER ENVIARAM AO MESTRE, E DA RESPOSTA QUE SOBRE ISTO LHES DEU.

 

Os moradores dAlenquer, quando souberam que a Rainha fora presa em Coimbra e o jeito que elRei de Castela com ela tivera, acordaram todos juntamente que era bem de terem com o Mestre, e isto com seu resguardo e certas condições, e enviaram a Lisboa o seu recado por Vasco Martins dAltero e Álvoro Fernandes do Rego, os quais chegaram ao Mestre e, ditas suas encomendações, propuseram por esta guisa: Senhor, aqueles homens bons dAlenquer e nós com eles, considerando como somos portugueses e todos naturais destes reinos, e como de razão somos teúdos de amar a prol e honra deles, mormente contra aquelas pessoas que sem razão e contra o direito lhes querem fazer dano e mover guerra, assim como agora faz elRei de Castela e aqueles que ajudam seu bando, querendo-os pôr em dura e grave sujeição contra a razão e direito, acordamos que era de bem seguir a vossa voz, e ter aquela vila por vós e em vosso nome, com esta condição: que sendo a Rainha dona Lionor solta, que agora é presa em poder delRei de Castela, e posta em seu livre poder, de guisa que nem esse Rei nem outra pessoa a possam reter nem fazer desaguisado contra sua vontade, que então vós lhe confirmeis e hajais por firme a doação daquele lugar, pela guisa que elRei dom Fernando vosso irmão lha fez, e que as rendas e direitos que vós entretanto houverdes do lugar que lhas mandeis depois entregar donde vossa mercê for, e que confirmeis aos moradores dessa vila seus bons usos e foros que antigamente sempre houveram.

Respondeu então o Mestre, e disse que esguardando o bom desejo que eles haviam pela honra e defensão do reino, e ademais como ele tinha a Rainha no lugar de mãe para a honrar e fazer por sua honra tudo aquilo que ele bem pudesse: Quando ela, disse ele, fosse tal que quisesse olhar pela honra e defensão destes reinos, o que cremos que daqui em diante fará, vendo bem as maneiras que contra ela teve elRei de Castela, e como a trata tão mal, praz-nos de lhe outorgar o que vós e eles pedis, contanto que tomem logo a nossa voz e se ponham por toda a honra e defensão destes reinos, e nos respondam com as rendas desse lugar. E sendo a Rainha em seu livre poder que haja essa vila como dantes havia, e assim lha outorgamos e confirmamos. Com a condição de que ao tempo em que o dito lugar lhe for entregue por nosso mandado ela prometa e jure que seja em toda a prol (vantagem, proveito) e honra e defensão destes reinos, assim contra elRei de Castela como contra quaisquer outras pessoas que contra eles sejam. E não o fazendo ela assim, e aconselhando o contrário por dito ou por feito, que a doação que lhe fazemos seja nenhuma, e que eles sejam teúdos de se levantar contra ela e de fazer guerra e paz por nós. E além de seus bons usos e foros que lhes confirmamos, lho entendemos de reconhecer com grandes graças e muitas mercês.

Então lhes deu o Mestre as suas cartas de tudo isto e com tal resposta se tornaram aos moradores do lugar, e ficaram por seus.

 

86. COMO ELREI PARTIU DE SANTARÉM E DO CONSELHO QUE HOUVE SE CERCARIA LISBOA.

 

ElRei de Castela, entendendo que havia mister de mais companhas do que as que consigo tinha, dado que as coisas se gizavam não como ele cuidava, tinha antes disto mandado ao Marquês de Vilhena e ao Arcebispo de Toledo e a Pero Gonçalvez de Mendonza, os quais deixara em Torrijos, perto de Toledo, por essa razão, que lhe enviassem até mil lanças bem corregidas, e estas foram prestes e enviadas a elRei como ele mandou.

ElRei partiu de Santarém com todas as gentes que aí tinha aos dez dias do mês de Março, levando consigo a Rainha sua mulher, e deixou no castelo um cavaleiro que chamavam Lopo Fernandez de Padilha, e na outra fortaleza, que chamavam a Alcáçova, outro cavaleiro a que diziam Fernam Carrilho, e com eles assaz de gentes, abastantes para guardar tudo.

E veio-se a Alenquer, onde Vasco Peres de Camões o saiu a receber e lhe deu o lugar, fazendo-lhe por ele menagem, e desta mesma guisa fez Fernão Gonçalves de Meira por Torres Vedras, e João Gonçalves Teixeira, o que era Anadel mor no tempo delRei dom Fernando, pelo castelo dÓbidos, contra a vontade dos moradores dos lugares. E veio elRei pousar a uma aldeia no termo desta vila, que chamam o Bombarral, e esteve aí quatro dias, e dali partiu e foi-se a Arruda, e alguns do lugar, com medo, meteram-se numa lapa, cuidando ali defender-se ou escapar, e souberam-no os castelhanos e puseram-lhe o fogo, e queimaram nela bem quarenta pessoas.

Os Reposteiros, que vinham adiante para preparar a câmara onde elRei havia de pousar, quando nela entraram acharam homens que estavam ali dentro escondidos, e tinham as suas espadas e punhais nas cintas, e filharam-nos e tiveram-nos presos até que elRei de Castela veio; e quando lhos apresentaram e soube da guisa como foram achados, disse para os que eram presentes: Por certo outra coisa não pode ser, ainda que estes digam que se esconderam aqui com medo, senão que vinham por mandado do Mestre para depois que eu estivesse dormindo me haverem de matar. E mandou que os enforcassem.

Nisto houve elRei seu conselho para ver se cercaria a cidade de Lisboa ou se andaria pelo reino fazendo guerra, porquanto já tão espalhada era entre os portugueses e os castelhanos.

E uns lhe aconselhavam dizendo que não era bem de vir cercar a cidade, porque algumas de suas gentes começavam já a morrer de pestilência, e que esta muito mais dano faria neles sendo todos juntos do que espalhados pela terra, e que muito melhor seria, pois grande parte do reino se lhe rebelava e era contra ele, de o andar apoderando, fazendo escarmento (acção punitiva) nos que lhe obedecer não queriam, do que por então cercar a cidade. Mormente que, ainda que ele pusesse o seu arraial sobre Lisboa, ela não seria no entanto cercada, pois o mar era desembargado e a sua frota não era vinda para lhe (à cidade) embargar o serviço dele. Além disto, que ele não trazia engenhos nem outros artifícios para lhe fazer nojo, e mesmo que os tivesse, que lhe prestariam muito pouco, dadas as muitas gentes que lá dentro estavam, e que portanto melhor era não pôr cerco sobre ela.

Outros eram de todo contra este conselho, dizendo que mal a sua frota viesse logo em ponto cercasse a cidade, porquanto Lisboa era o melhor lugar de todos e cabeça principal do reino, e que de tal guisa tinham nela o olho quantos lugares aí havia que ganhada Lisboa todo o Portugal era cobrado. Ademais que com o Mestre estavam muitos, com as suas gentes, dos que contra elRei tinham voz, além dos moradores da cidade e de outros que se acolheram a ela do termo em redor, e que não podia ser que as viandas não lhes viessem a faltar com o tempo, razão pela qual não haviam de lha poder defender longamente, e havia por força de sempre cobrá-la mal-grado eles.

A elRei pareceram estas boas razões, e crendo este conselho, que depois lhe foi danoso, determinou que quando a frota chegasse logo nessa hora a fossem cercar, e que, entretanto, muito melhor e mais à sua vontade estariam pelas aldeias e comarca de arredor. Onde deixemos elRei em sossego com todas as suas gentes até que lhe venha a frota, não tendo por agora mais que contar dele, e vejamos o que fez neste tempo o Mestre com os da cidade nos preparativos da sua defensão, havendo lugar para tal, desembargadamente, bem por espaço de cinquenta dias.