XVII - A frota no Porto e na Galiza

A divisão em grandes capítulos numerada em romano é apócrifa, tal como os respectivos títulos, e foi introduzida pelo «O Espaço da História».

 

122. COMO RUI PEREIRA DISSE A SUA MENSAGEM AOS DO PORTO, E DA RESPOSTA QUE LHE DERAM.

 

Depois que os da cidade foram assossegados, e igualmente as gentes da frota, disse Rui Pereira aos do lugar que se juntassem todos porque lhes queria notificar algumas coisas que o Mestre lhes mandava dizer. No outro dia, sexta-feira, ajuntaram-se todos para ouvir a sua embaixada, a qual foi por ele proposta mostrando primeiro uma carta de credença, e começou a dizer desta guisa:

Senhores, amigos, o Mestre, nosso Regedor e Defensor, vos envia muito saudar e se encomenda em vossas boas lealdades, e manda-vos dizer que bem sabeis como este reino anda todo revolto com desvairadas tenções, e como os castelhanos o querem subjugar e haver para si a todo o seu poder, o que lhes Deus nunca guisará, e como ele, para bem do reino e sua defensão, tomou voz de regedor e defensor dele, pois não há aí outro que se ponha pelo reino para o defender e amparar, e que ele se oferece para a sua defensão até pôr o corpo e a vida à morte. E que outrossim sabeis bem como elRei de Castela está já muito perto da cidade com todas as suas gentes e poder para o haver de cercar; e como correm e gastam toda aquela comarca que já têm por sua, aguardando-se que, assim que vier a frota, logo cerquem toda a cidade por mar e por terra. E por isso vos envia rogar como a bons naturais e leais portugueses, e como a gentes que sempre mostrastes lealdade à casa de Portugal, que vos praza destas naus e barcas que há aqui nesta cidade serem logo armadas. E que igualmente façais deitar as galés na água, e que elas sejam logo equipadas para, com mais estas outras que agora vieram de Lisboa, irem todas pelejar com a frota de Castela depois que esta vier. E temos esperança em Deus, e na Virgem Maria sua mãe, que nos ajudará contra eles, e nos dará dela tal vencimento que será em grande honra e proveito do reino e serviço de nosso Senhor, o Mestre, e em muito boa nomeada de nós outros todos. Além disto vos envia mais dizer que, pela grande necessidade em que ele é posto, e para defensão destes reinos a que tanto mister faz, lhe acorrais com uma soma de dinheiros emprestados que escusar não pode para tão necessárias despesas como vós vedes que se seguem, e que ele não tem outras prendas para vos dar por tal empréstimo senão a si mesmo, se Deus o guardar de mal – o que prazerá a Deus, que o guardará –, e que ele vos promete como filho de rei que é, e por toda a sua verdade, que vos há-de pagar tudo muito bem, e para isto trago eu aqui sua procuração e poder abastante, como bem podeis ver, para me obrigar em seu nome como a vós todos prouver.

Respondeu então um homem, bom cidadão do lugar, que chamavam Domingos Peres das Eiras, a que os da cidade deram vez que falasse por eles, havendo já antes informação do que lhes havia de ser proposto, e disse nesta guisa:

Rui Pereira, vós dissestes muito bem a vossa mensagem e tudo o que vos foi encomendado, e eu digo por mim e por todo este povo que aqui está que nós somos prestes, com boa vontade, de servir o Mestre, nosso Senhor, e fazer tudo o que ele mandar para seu serviço e defensão do reino. Pois já mesmo que fosse um estranho que nós não conhecêssemos, quando ele se dispusesse a tais trabalhos e perigos para nos defender e amparar, nós o serviríamos com os corpos e haveres; e mormente por ele ser filho delRei dom Pedro, como é, e não termos outrem a quem recorramos entretanto senão a Deus e a ele, muito de grande razão é que nós façamos qualquer coisa que da sua mercê for, ademais que é pela defensão destes reinos de que todos somos naturais. E por isso o ouro e prata e dinheiros, e todo o mais quanto temos, tudo faremos prestes para tal negócio, pois não se podem despender em coisa mais aguisada do que pela defensão da nossa terra, e para nunca sermos em poder de castelhanos, e todos seguiremos a sua tenção, porque é muito aguisado e não há nesta cidade quem defenda o contrário disto, e quando um tal aqui fosse achado, o que Deus não mande, ele não haveria vida entre nós. E para isto as naus e barcas e galés, com todas as outras coisas que lhes fizerem mester, lhe oferecemos de muito boa vontade.

De farinhas, carnes e pescados e vinhos que fizerem mister à frota, de tudo havereis abastamento, e todas as gentes da cidade que para tal obra forem pertencentes, todas nela entrarão de muito boa vontade, e portanto vos põem requeredores para isto quais vós quiserdes, e logo tudo será feito sem nenhuma míngua.

E mandai vossas cartas pelas comarcas a quaisquer que têm voz por Portugal, de modo a que venham depressa para irem nesta frota, e certo é que todos os que amam a honra e proveito do reino logo serão aqui. E entre esses a que sempre haveis de escrever está o Conde dom Gonçalo, que tem Coimbra, e isto por três razões: a primeira, porque poremos em segurança Coimbra, que é lugar de que poderia vir grande torva à nossa demanda; a segunda, pelas gentes que tem consigo, que nos serão de boa ajuda; a terceira, porque se ele vier para ir na frota nenhum dos outros não haverá que dizer.

Então acordaram que era bem de lhe enviarem recado por dom Martim Gil, Abade de Paço, e depois escreveram as suas cartas a outras pessoas por essa comarca, fazendo-lhes saber qual era toda a sua tenção, e que se preparassem logo e viessem ao Porto, e que lhes dariam aí todas as coisas de que mister houvessem sem nenhuma míngua.

 

123. DO RECADO QUE OS DO PORTO ENVIARAM AO CONDE DOM GONÇALO, E DA RESPOSTA QUE A ISTO DEU.

 

Isto assim acordado, escreveram a sua credencial para o Conde e deram-na a dom Martim Gonçalves (Gil), Abade de Paço, que depois foi Bispo do Algarve. E este chegou a Coimbra, onde o Conde estava, e foi dele bem recebido, porque era da sua feitura e por ele houvera a abadia, e perguntou-lhe o Conde de praça o que o deitara para aquela parte. Senhor, disse ele, o que cá me fez vir é uma mensagem que vos trago daqueles homens bons do Porto.

Então se puseram à parte e, lida a carta de credença, propôs dom Abade nesta guisa: Senhor, aqueles homens bons da cidade do Porto, e igualmente o Capitão da frota que agora ali chegou de Lisboa, com todas as gentes que nela são, se enviam muito encomendar na vossa mercê, dizendo que bem sabeis como este reino, por nossos pecados, é agora diviso em duas partes, de guisa que a vinda do Anticristo não podia nele fazer maior divisão do que em por ora esta terra está, pois os castelhanos são todos contra Portugal, e a maior parte dos portugueses, como bem vedes. Mas não embargando isto, o Mestre com toda a vontade se pôs de todo a defendê-lo, sofrendo nisso grande trabalho e perigo, pois não há aí outrem que o queira amparar. Ele está em Lisboa prestes para ser cercado, como já tereis ouvido dizer, e elRei de Castela vai sobre a cidade com todo o seu poder e frota, e o Mestre, receando-se muito do grande nojo que pode receber da frota de Castela, tomando-lhe ela o rio, e de não haver os mantimentos e a ajuda que poderia ter dalguns lugares do Alentejo devido a ser cercado por mar, mandou certas galés ao Porto para se juntarem com as naus e galés que aí são, e irem depois todas armadas, segundo lhes cumpre, pelejar com a frota de Castela para desempachar o rio e ficar a cidade desabafada daquela parte. E para tal se arma a frota das naus e galés o mais que pode, e escreveram já a muitos sobre isto de molde a que venham depressa para entrar nela. E porque a frota cumpre de ir bem armada e posta sob a governança dum bom capitão, e dado que nesta comarca não há nenhum semelhante a vós, acordaram que era bem de vos escrever a este respeito; e por isso vos enviam pedir por mercê que os ajudeis nesta demanda e vos praza de tomar encarrego da frota e de serdes senhor dela, e todos eles vos querem obedecer e ir sob a vossa guarda e capitania, e dar-vos cumpridamente todas as coisas que mister houverdes vós e os vossos. Por a qual razão, se vossa mercê for de o fazer, me parece que alcançareis mui grande honra e mostrareis nisso a vossa bondade, e todos vos terão em grande bem ajudardes a defender a terra de que sois natural, segundo o meu entendimento abrange, e deste feito não entendo outra coisa.

Depois destas e outras razões que dom Abade disse ao Conde, a primeira coisa que ele fez foi perguntar-lhe porque não ia Gonçalo Rodrigues de Sousa por capitão da frota, assim como viera de Lisboa.

Senhor, disse ele, assim é que Gonçalo Rodrigues, como chegou ao Porto, logo passados poucos dias partiu daí e dizem que vos veio falar, e depois a Gonçalo Gomes da Silva, e ao Mestre seu sobrinho, e também a Gonçalo Vasques dAzevedo, da qual coisa todos foram mal contentes, dizendo que não andava lealmente no serviço do Mestre, mas que queria vender as galés e a frota a elRei de Castela, por a qual razão houve grande alvoroço na cidade e ele quase foi retido, e por causa disto não se fiam dele em coisa que seja, nem há-de ir por capitão nem com nenhum outro título de honra.

O Conde, ao ouvir aquilo, depois do longo razoado que entre eles houve, deu-lhe finalmente por resposta que se o Mestre lhe quisesse dar as terras que foram da Rainha dona Lionor, sua irmã, ele tomaria a sua voz e o serviria na frota, e em toda a coisa que de seu serviço fosse.

Tornou-se então dom Abade com este recado, e sendo a proposta vista por Rui Pereira e Gonçalo Peres, e outros que do serviço do Mestre tinham grande carrego, escreveram-lhe logo sobre o assunto.

O Mestre, quando isto viu, não soube que resposta lhe desse, porquanto destas terras tinha feito mercê a NunÁlvares, que já antes lhas pedira; contudo, para ter o Conde ao seu serviço, fez saber a NunÁlvares o que lhe haviam escrito e em que termo estavam todos estes feitos. NunÁlvares, em que todo o seu desejo era encaminhar o serviço do Mestre por onde quer que pudesse, quando viu a sua carta, mandou logo de Évora, onde então estava, um seu Escudeiro com a resposta ao Mestre, dizendo que não embargando que lhas ele tivesse prometidas, e feito delas mercê primeiro, lhe prazia muito que as desse ao Conde para o haver ao seu serviço. E que não dizia só aquelas terras, mas inclusive tudo o mais quanto ele tinha, que o desse a quem fosse sua mercê para encaminhar o seu serviço, pois que ele esperava que o Senhor Deus acrescentaria tanto ao Mestre em sua honra e estado que este depois lhe galardoaria tudo melhor do que ele lhe saberia pedir.

O Mestre, quando viu esta resposta, teve-lho por grande bondade, e em seguida, para garantir o seu serviço que em tal sazão tanto lhe cumpria, escreveu logo à pressa ao Conde, prometendo-lhe as terras que foram de sua irmã, e mais lhe mandou em uma carta que ele pudesse tomar para si, e para os que com ele estavam, todos os direitos e rendas que o Mestre devia de haver em Coimbra, e confirmou a seu filho dom Martinho o lugar de Bouça e de Lordelo, que dantes tinha, e o Conde ficou logo por seu e começou de se fazer prestes para o servir e entrar na frota.

Então chegou ali Gonçalo Peres e pediu ao Conde que lhe mandasse dar o biscoito que estava em Coimbra e em Monte-Mor, e ao Conde prouve de tal, e levaram daí muito biscoito e armas com que carregaram dois baixéis para o Porto, e o Mestre mandou dar ao Conde muitos dinheiros de graça e peças de pano para ele e para os seus, e desta guisa teve ele com o Mestre e tomou a sua voz.

 

124. COMO AS GALÉS FORAM CORRER A COSTA DA GALIZA, E DOS QUE LHES AVEIO EM SUA VIAGEM.

 

No Porto estava dom Pedro, Conde de Trastâmara, que se lançou em Coimbra quando elRei de Castela aí veio para cobrar a cidade, conforme antes contámos, e com ele estavam dois irmãos seus; um deles era Afonso Anriquez, Caçador mor delRei de Castela, e o outro era o Afonso Anriquez mais moço, que foi filho duma Judia, e este viera-se já a Lisboa dizer ao Mestre como estavam prestes para o seu serviço, e ficara ali com ele. E todos os três eram filhos do Mestre de Santiago dom Fradarique, filho que foi delRei dom Afonso e de Lionor Nunez de Gozman, o qual dom Fradarique foi depois morto por elRei dom Pedro de Castela, segundo dissemos em seu lugar, se disso sois acordados.

Neste comenos o povo da cidade, solto e livre dos outros cuidados, não com pequenas, mas grandes despesas, fazia corrigir com trigança quaisquer coisas que eram convenháveis para tamanho negócio e o serviço do Mestre, sem o que eles não criam que o reino pudesse ser defeso, e trabalhando cada um de pôr em obra quanto a sua boa vontade desejava de fazer, houveram entre si conselho, pois as galés eram já armadas e as gentes se vinham juntando para entrar nas naus, de que fossem entretanto correr a costa da Galiza.

E ordenado como se partissem, foi-lhes dado mantimento para certos dias, e iam nas galés de Lisboa por patrões os que de lá vieram nelas, e a única excepção era na galé real, em que tinha vindo Gonçalo Rodrigues de Sousa, que nesta ia o Conde dom Pedro por capitão a que todos obedecessem; e na galé que chamavam Santa Ana ia Gonçalo Vasques de Melo, e seu irmão Vasco Martins, que depois morreu na batalha (Aljubarrota); na Bem Aventurada, Afonso Furtado; na que chamavam Santa Clara, Estêvão Vasques Filipe; na que diziam SanHoane, Lourenço Mendes de Carvalho, Comendador; noutra que chamavam São Jorge, micer Manuel, filho de Lançarote Peçanho, Almirante que foi morto em Beja; na que chamavam Santa Vitória, João Rodrigues Guarda; na Santa Maria de Cacela, Antão Vasques; e ainda Gil Estevens, e Airas Peres de Camões e outros em galés quer do Porto quer de Lisboa que mais não curamos de nomear.

E correndo a costa da Galiza chegaram primeiro a Bayona de Minhor, um castelo fraco e pequeno, e para lhe não queimarem a pescaria deram quatrocentos francos. E depois foram-se a Mugia, que é pescaria sem fortaleza, e queimaram aí dois navios que estavam no estaleiro. Dali partiram para a Crunha, e para lhe não queimarem a pescaria deram-lhes seiscentos francos. E ficaram ali parte das galés e foram-se seis a Ferrol, e este foi todo queimado que não ficou dele senão a igreja; em seguida chegaram a Neda, e foi preiteada por quatrocentos francos.

Depois tornaram estas seis galés e partiram da Crunha com as outras todas e foram-se a Betanços, boa vila acastelada, porquanto houveram novas de que estavam aí algumas naus com artifícios de combater vilas que iam para Lisboa, e acharam uma nau carregada de engenhos que ia para o arraial, e puseram-lhe o fogo, e queimaram outra nau nova de Pedro Ferrenho, da Crunha, e tomaram uma galé que chamavam a Volanda junto ao muro da vila, no que alguns foram feridos, e trouxeram-na consigo. Então começaram a combater o lugar de guisa que juntaram com o muro, que iam ali mui valentes homens e ardidos de coração, assim como João Rodrigues Guarda e Antão Vasques, e outros fidalgos para muito. E estando a ponto de a tomar, e sendo os da vila tão afincados que já começavam a desamparar os muros, o Conde dom Pedro, que ia por capitão, mandou dar às trombetas, bradando que se afastassem para fora, dizendo que não estava bem morrerem ali alguns para tomarem um tal lugar como aquele, e que se preiteasse que, caso no outro dia não lhe viesse acorro, o lugar lhes fosse entregue sem mais contenda; e isto fizeram os portugueses de muito mamente, tomando disto não boa suspeita.

Nessa noite veio Fernam Perez dAndrade, e lançou-se no lugar com tanta gente que foi escusada a preitesia. Disto foi muito prasmado o Conde, dizendo-se que, porquanto ele sabia deste acorro que havia de vir aos da vila, por isso lhes mandara que não a combatessem mais, fazendo-lhes entender que mais seguro era dar tempo aos do lugar de que o tomar pela força.

Andaram então por aquela costa tomando muito refresco e fazendo todo o mal e dano que podiam, de guisa que do percalço (ganho) que então trouxeram foi pago às galés o soldo de três meses.

Sendo eles já no Porto, por ledice de sua vinda, ordenou-se um torneio em véspera de são João, que era dia em que os moradores daquela cidade costumavam de fazer grande festa, e o torneio foi de capelinas com espadas brancas muito cortadoras, segundo a usança daquele tempo, e deu Afonso Anriquez, Caçador mor, a seu irmão dom Pedro por cajão uma cutilada na mão direita, de que depois ficou aleijado, e por cujo azo não veio na frota quando ela partiu do Porto para Lisboa.